A escrita e o inverno: como as estações inspiram a literatura
Partilhar:
20 de dezembro de 2024
Talvez seja a ideia mais romântica do ato de escrever: alguém metido numa cabana no meio de uma montanha gelada – frio fora, calor dentro – a escrever um romance. Também se dará o inverso: um calor tropical e um cenário gelado nos livros. Seja como for, aqui vão alguns exemplos de páginas com graus negativos. Há que pegar em luvas para ler estes livros.
Os russos cristalizaram, na literatura, aquela tonalidade cristal da neve. Bem se percebe: com temperaturas a chegar aos 40 negativos, e narrativas metidas nesses ambientes gelados, seria natural que o clima fizesse o seu caminho nos livros. Não deve ter existido clássico russo que não tivesse pés em neve fofa, corpos a precisar de embrulho. Este ambiente serviu para criar a ideia de lugares inóspitos, mesmo que habitados, a que se juntou o pessimismo de quem viu gelar os sonhos. Ler Dostoiévski ou Tolstoi implica encarar isto, e prosas contundentes, e nevascas fortes, frio que aleija a pele, e conhecer um país em que tanta gente vive num embate contra o ar.
Comecemos por Dostoiévski, que tão bem soube retratar a decadência, e com ela o desconforto. Aqui, o desconforto implica frio. Em Cadernos do Subterrâneo, publicado numa revista em 1864, temos uma história que impressiona pela crueza – e aqui cru é o que não viu lume. O narrador até dá pena: humilhado pela sociedade, humilha-se a si mesmo, e é isso que dá asco a quem o lê. Há qualquer coisa de repulsa naquela autovisão sem pó de arroz. As cores são sombrias, o ambiente é gélido, tudo sabe a desconforto, a vida que existe apesar das condições.
Os russos cristalizaram, na literatura, aquela tonalidade cristal da neve. Bem se percebe: com temperaturas a chegar aos 40 negativos, e narrativas metidas nesses ambientes gelados, seria natural que o clima fizesse o seu caminho nos livros. Não deve ter existido clássico russo que não tivesse pés em neve fofa, corpos a precisar de embrulho. Este ambiente serviu para criar a ideia de lugares inóspitos, mesmo que habitados, a que se juntou o pessimismo de quem viu gelar os sonhos. Ler Dostoiévski ou Tolstoi implica encarar isto, e prosas contundentes, e nevascas fortes, frio que aleija a pele, e conhecer um país em que tanta gente vive num embate contra o ar.
Comecemos por Dostoiévski, que tão bem soube retratar a decadência, e com ela o desconforto. Aqui, o desconforto implica frio. Em Cadernos do Subterrâneo, publicado numa revista em 1864, temos uma história que impressiona pela crueza – e aqui cru é o que não viu lume. O narrador até dá pena: humilhado pela sociedade, humilha-se a si mesmo, e é isso que dá asco a quem o lê. Há qualquer coisa de repulsa naquela autovisão sem pó de arroz. As cores são sombrias, o ambiente é gélido, tudo sabe a desconforto, a vida que existe apesar das condições.
Em Pais e Filhos, Turguénev conta a história de duas gerações. Ora, duas gerações na Rússia significam muitos invernos, muitos passos dados em neve. Era frio a gelar os ossos, neve a ranger sob os sapatos, o branco metálico a cobrir as ruas todas. Neste ambiente, já de si agreste, com prosa fina e incisiva, o autor russo conta a história que fascinou autores como Flaubert ou Maupassant e que, como quase todas as grandes histórias dos clássicos da literatura, usa a família como campo de batalha. Ali, Bazárov, à herói, é antissocial e abomina autoridades. No meio disto, é mentor de Kisánov, que, findos os estudos universitários, volta a casa ao lado do discípulo. Metendo-se na família, funciona como elemento propulsor de problemas entre os Kirsánov, trazendo para a narrativa, neste cenário, a vida da Rússia do século XIX. E já se sabe que a vida da Rússia costuma trazer gelo.
Perto da Rússia, e mais perto de Portugal do que a Rússia, temos a Noruega, onde o protagonista de Hamsun andou à Fome. Hamsun escreveu, e anos depois Martin Ernstsen adaptou para novela gráfica. É impressionante: há um jovem escritor que deambula, entre a fome e o delírio, entre o frio e o desespero, por Oslo em busca de uma saída. Todo o livro é fome, e o delírio também vem da falta de calor no estômago, que a falta de calor na pele adensa. Tudo isto significa que todo o livro é um tormento. Lá segue o protagonista de casaco aberto: a fome é tanta ao longo da vida, a pobreza também, que até os botões teve de vender. A sua psique é alterada pelo estado, o desespero molda-lhe os passos, e por isso anda à toa, exaltando-se, abatendo-se, improvisando. Ei-lo, de repente, entre o gelo a roer ossos. De forma magistral, Hamsun descreveu a que estado animalesco se reduz um humano quando lhe falta o mais básico.
Perto da Rússia, e mais perto de Portugal do que a Rússia, temos a Noruega, onde o protagonista de Hamsun andou à Fome. Hamsun escreveu, e anos depois Martin Ernstsen adaptou para novela gráfica. É impressionante: há um jovem escritor que deambula, entre a fome e o delírio, entre o frio e o desespero, por Oslo em busca de uma saída. Todo o livro é fome, e o delírio também vem da falta de calor no estômago, que a falta de calor na pele adensa. Tudo isto significa que todo o livro é um tormento. Lá segue o protagonista de casaco aberto: a fome é tanta ao longo da vida, a pobreza também, que até os botões teve de vender. A sua psique é alterada pelo estado, o desespero molda-lhe os passos, e por isso anda à toa, exaltando-se, abatendo-se, improvisando. Ei-lo, de repente, entre o gelo a roer ossos. De forma magistral, Hamsun descreveu a que estado animalesco se reduz um humano quando lhe falta o mais básico.
Ali ao lado, Nils Holgersson voava. Selma Lagerlöf narrou a história, fruto de uma encomenda para as escolas da Suécia. O objetivo era ensinar às crianças a geografia do país, e eis os leitores coevos, e de outras zonas, a aprender também. Nils põe-se em cima de um ganso e com ele segue num voo migratório até à Lapónia. Do ar, conta-se e vê-se a história toda, com a autora a usar a história e as lendas locais, mostrando o país inteiro, e o equilíbrio entre os humanos e a natureza. E, claro, lá de cima, entre o ar não raras vezes gelado, vê-se muita neve e muito gelo.
Agora em território português, voamos diretamente para Manteigas com Horácio. Em A Lã e a Neve, Ferreira de Castro conta a história deste homem que, depois de fazer a tropa em Lisboa, voltou à serra de onde era. À sua volta, a neve; dentro de si, a vontade de uma vida que não implique a corda ao pescoço o dia todo. Emprega-se numa fábrica de tecelagem e, agora operário, acreditando numa vida tranquila em comum, casa com Idalina. Mas trabalhar na lã é duro, a casa onde vivem não passa de um casebre, e tremem os dois o dia todo, com a neve lá fora a fazer-se sentir dentro, conscientes das poucas perspetivas de vida, e frustrados pelo seu afunilamento.
Agora em território português, voamos diretamente para Manteigas com Horácio. Em A Lã e a Neve, Ferreira de Castro conta a história deste homem que, depois de fazer a tropa em Lisboa, voltou à serra de onde era. À sua volta, a neve; dentro de si, a vontade de uma vida que não implique a corda ao pescoço o dia todo. Emprega-se numa fábrica de tecelagem e, agora operário, acreditando numa vida tranquila em comum, casa com Idalina. Mas trabalhar na lã é duro, a casa onde vivem não passa de um casebre, e tremem os dois o dia todo, com a neve lá fora a fazer-se sentir dentro, conscientes das poucas perspetivas de vida, e frustrados pelo seu afunilamento.
Esta casa faz lembrar a de Agatha Christie, também com neve à volta em época de Natal. Também no campo, eis o lugar para uma história pejada de crime e mistério. Como a época é esta, temos também um festim de personagens: temos Hercule Poirot e Miss Marple a desvendar o caso, que começa com um bilhete sinistro deixado na almofada do primeiro. E lá vamos nós, entre o frio do campo inglês, encontrar um corpo morto, ver uma discussão terminar em morte, seguir quem sonhou com o próprio suicídio. Sempre mirabolante, e vai bem com Crimes de Inverno
, da mesma autora. Com noites cada vez mais frias, com dias cada vez mais curtos, Poirot e Miss Marple juntam-se outra vez e já se sabe como é quando aparece pelo menos um destes dois: uma prenda é perigosa, um jantar tem veneno e até um mísero floco de neve pode dar cabo da vida de alguém.
E, já que falamos de neve, viajemos ao Ártico, que é o meu sítio preferido. Vamos à boleia de James Rollins, que ainda nos leva a passear para mais lugares, com a obra Arcanjo.O Kremlin arranja maneira de deixar morto um arquivista do Vaticano, e de repente fica à vista uma conspiração com três séculos de existência, partindo dos czares russos. Enfim, a morte tem o seu quê de mistério, e lá se acaba no Ártico, esse lugar belo entre o branco e o azulado, e gélido, e inesquecível, e procura-se um continente perdido. A parte boa do livro é que se pode entrar nas profundezas do Ártico ou pisar o solo russo sem dar cabo das amígdalas ou achar que os dedos se transformam em gelo.
São vários cenários, e é fácil notar: seja a família em colapso ou a vida estragada, seja um passeio no ar ou um amor num casebre, seja um mistério numa aldeia ou no mundo inteiro, o frio dá um ar de urgência a tudo. E deixa cada coisa mais intensa.
E, já que falamos de neve, viajemos ao Ártico, que é o meu sítio preferido. Vamos à boleia de James Rollins, que ainda nos leva a passear para mais lugares, com a obra Arcanjo.O Kremlin arranja maneira de deixar morto um arquivista do Vaticano, e de repente fica à vista uma conspiração com três séculos de existência, partindo dos czares russos. Enfim, a morte tem o seu quê de mistério, e lá se acaba no Ártico, esse lugar belo entre o branco e o azulado, e gélido, e inesquecível, e procura-se um continente perdido. A parte boa do livro é que se pode entrar nas profundezas do Ártico ou pisar o solo russo sem dar cabo das amígdalas ou achar que os dedos se transformam em gelo.
São vários cenários, e é fácil notar: seja a família em colapso ou a vida estragada, seja um passeio no ar ou um amor num casebre, seja um mistério numa aldeia ou no mundo inteiro, o frio dá um ar de urgência a tudo. E deixa cada coisa mais intensa.
Livros relacionados
Wook está a dar
Leia o Inverno em qualquer altura do ano
SABER+
Para ler no Inverno
SABER+