Pais e Filhos
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@confissoesdumlivreiro
30 de junho de 2025
A relação entre pais e filhos é uma das experiências humanas mais abordadas em livros. A literatura, por ser espelho e simulação, tem um papel privilegiado na hora de desenterrar o que é íntimo e dar forma às experiências pessoais que habitam as margens do dizível. Em Acolher, de Claire Keegan, Filho do Pai, de Hugo Gonçalves, A de Açor, de Helen Macdonald, Carta ao Pai, de Franz Kafka, e O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, encontramos diferentes modos de refletir sobre a tensão emocional que atravessa as relações entre pais e filhos.
Carta ao Pai, de Franz Kafka
Em Carta ao Pai, Franz Kafka oferece-nos uma das missivas mais dolorosas e célebres escritas por um filho a um pai. O texto, que nunca chegou a ser enviado, é uma tentativa de compreender a figura do pai, símbolo de autoridade, opressão e desaprovação. O escritor de A Metamorfose transforma o pai num gigante que anula, que impõe o medo em vez de afeto e que educa pelo castigo e não pelo cuidado. Durante a leitura, apercebemo-nos do constante conflito interno do autor que quer, ao mesmo tempo, a reconciliação, a compreensão e a possibilidade de se perdoar a ele próprio pelas dificuldades que marcaram essa ligação. Mais do que uma má relação entre pai e filho, o livro revela como os afetos mal geridos se transformam em sombras inescapáveis na construção da identidade do sujeito.
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Filho do Pai, de Hugo Gonçalves
Hugo Gonçalves, em Filho do Pai, inscreve-se numa linha semelhante, mas desloca o foco para a herança emocional e social que um pai deixa ao seu filho. O narrador é confrontado com a morte do pai e, com ela, cresce a necessidade de revisitar um passado cheio de omissões, silêncios e responsabilidades transferidas. Nesta jornada de resgate, percebemos que ser “filho de alguém” é também um processo de desconstrução. É urgente desfazer os nós que nos prendem a experiências que nem sabemos que vivemos. Gonçalves faz da sua prosa um local de arqueologia íntima, onde a masculinidade é posta em causa, o silêncio é tão violento quanto as palavras não ditas, e o luto não é apenas pela pessoa que se perdeu, mas também pelas relações que permaneceram vazias.
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Acolher, de Claire Keegan,
Já em Acolher, Claire Keegan aborda a questão da parentalidade a partir de dois ângulos muito distintos. A protagonista é uma menina temporariamente deixada ao cuidado de uma família substituta, enquanto a sua família biológica atravessa dificuldades. Durante essa breve temporada junto de um casal que a acolhe como se fosse sua filha, a menina experimenta um afeto até então desconhecido: sente-se ouvida, respeitada, importante. Este livro breve alerta o leitor para o facto de que os laços afetivos vão muito além do mero sangue e que é na presença, nas pequenas ações e na disponibilidade amorosa que se forjam vínculos autênticos. Esquecida e maltratada pelos pais biológicos, é na família de acolhimento que a criança encontra um modelo de afeto que permanecerá para sempre na sua memória emocional. A figura dos pais, neste contexto, torna-se quase espectral (está presente na dor da falta, nas dúvidas, nas ausências), enquanto o amor se manifesta nas mãos que a embalam, nas refeições partilhadas, nas palavras reconfortantes.
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A de Açor, de Helen Macdonald
A de Açor, de Helen Macdonald, é um livro de memórias que retrata uma jornada de luto e de autoconhecimento. A escritora atravessa a dor causada pela morte do pai, enquanto se relaciona, de forma quase física, com um açor, uma ave de rapina que é, na mesma medida, um espelho do seu luto, um animal selvagem que precisa de ser domado. A presença do pai revela-se fundadora, sendo ele a pessoa que a iniciou na arte da falcoaria, enquanto a sua ausência faz desabar o mundo emocional de Macdonald. O longo processo de treino de um açor transfoma-se numa metáfora do próprio acto de domar a dor e de encontrar, nas garras de um ser feroz, um espaço para o perdão, para a reconstrução de um eu despedaçado, que quer aprender a voar novamente. Entre o instinto, a memória, a dor e o afeto, a narrativa revela que o luto é um lugar de passagem, onde o sujeito se torna capaz de se reinventar.
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O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório
Em O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, a figura do pai é revisitada por um filho que quer compreender a estrutura racial e social que os separou e, de certa forma, os destruiu. O pai, um professor negro, é vítima da violência policial, e a sua morte é um ponto de viragem na família. A narrativa revela como o racismo atravessa relações pessoais, como corta elos, silencia vozes e condiciona futuros. Tenório fala do Brasil, mas também de um mundo marcado pelas desigualdades. O legado do pai não é apenas afetivo, é também político. O filho reconstrói a memória, como quem remenda uma herança dilacerada pelo silenciamento, pelo preconceito institucional e pelas injustiças que atravessam a família de forma transgeracional.
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Nestes livros, os pais não são heróis nem vilões, mas figuras complexas, muitas vezes ausentes ou falhadas, cujos gestos, ou a falta deles, deixam marcas indeléveis na vida dos filhos. O que une estes textos é o desejo de compreender o que significa ser filho: herdar, resistir, perdoar, romper ou dar um nome às experiências que moldaram o desenvolvimento emocional de cada um. Se a literatura é, por definição, um exercício de escuta, talvez estes filhos estejam, na verdade, a criar um novo idioma, uma linguagem que, nos intervalos do silêncio, permite dizer o que ficou por dizer. E essa é, provavelmente, a maior reconquista da palavra.
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