A beleza de estar a caminho
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3 de julho de 2025
Ler sobre viagens é também uma forma de participar da experiência: não como deslocação geográfica, mas como gesto de suspensão e abertura. A viagem torna-se metáfora e matéria da própria escrita: a narrativa abandona a lógica linear da chegada para privilegiar o fragmento, o desvio, a escuta. Nestes livros, estar a caminho é um modo de pensar e de narrar.
M Train, de Patti Smith
Patti Smith, em M Train, reconfigura a ideia de viagem convertendo-a numa meditação íntima. Este livro mistura caderno de memórias, diário de bordo e reflexão poética. Trata-se de uma narrativa memorialística e ensaística em que a autora mapeia a sua existência através de lugares queridos e recordações íntimas, parando simbolicamente em dezoito “estações” da sua vida. O título evoca uma “linha M” imaginária: como se cada destino fosse uma estação num percurso pessoal. De facto, Smith estrutura o livro em dezoito “estações”, começando pelo Café ‘Ino em Greenwich Village (Nova Iorque), onde ela tomava o seu café preto matinal e deixava divagar o pensamento entre o presente e o passado. A partir deste refúgio boémio, a autora embarca numa deriva de memórias e sonhos, alternando entre a rotina do quotidiano e a evocação de viagens marcantes da sua vida.
Ao longo dessas estações, M Train transforma-se num autêntico diário de bordo do universo criativo de Patti Smith. Os capítulos, ilustrados com polaroids tiradas pela própria autora, levam-nos a destinos inesperados, guiados pelas suas obsessões literárias e artísticas. As páginas oscilam fluidamente entre a realidade e a imaginação, enquanto acompanhamos Smith em peregrinações de fã e exploradora: da remota Guiana às ruas da Cidade do México, da mítica Casa Azul de Frida Kahlo em Coyoacán às calçadas de Berlim. A autora visita os túmulos de escritores que a inspiram: Jean Genet, Sylvia Plath, Arthur Rimbaud, Yukio Mishima; senta-se na cadeira que pertenceu ao chileno Roberto Bolaño; hospeda-se em hotéis que parecem saídos de séries de televisão; e presta homenagem a vozes transgressoras como William S. Burroughs e W. G. Sebald e, como todos os viajantes, recorda coisas para as quais não há explicação. Patti Smith viaja movida pela carga de memória que cada lugar transporta, num desejo de uma beleza que “transgrida a ordem do tempo”.
Mas M Train não é um mero catálogo de destinos excêntricos; é sobretudo uma meditação poética sobre a passagem do tempo, a perda e o poder redentor da arte. O texto avança como uma conversa íntima, ora lírico ora prosaico, impregnado de saudade mas também de gratidão pelas inspirações colhidas no caminho. No fim da jornada, o leitor intui que para Patti Smith viajar e ler são formas de buscar sentido diante da finitude.
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Ao longo dessas estações, M Train transforma-se num autêntico diário de bordo do universo criativo de Patti Smith. Os capítulos, ilustrados com polaroids tiradas pela própria autora, levam-nos a destinos inesperados, guiados pelas suas obsessões literárias e artísticas. As páginas oscilam fluidamente entre a realidade e a imaginação, enquanto acompanhamos Smith em peregrinações de fã e exploradora: da remota Guiana às ruas da Cidade do México, da mítica Casa Azul de Frida Kahlo em Coyoacán às calçadas de Berlim. A autora visita os túmulos de escritores que a inspiram: Jean Genet, Sylvia Plath, Arthur Rimbaud, Yukio Mishima; senta-se na cadeira que pertenceu ao chileno Roberto Bolaño; hospeda-se em hotéis que parecem saídos de séries de televisão; e presta homenagem a vozes transgressoras como William S. Burroughs e W. G. Sebald e, como todos os viajantes, recorda coisas para as quais não há explicação. Patti Smith viaja movida pela carga de memória que cada lugar transporta, num desejo de uma beleza que “transgrida a ordem do tempo”.
Mas M Train não é um mero catálogo de destinos excêntricos; é sobretudo uma meditação poética sobre a passagem do tempo, a perda e o poder redentor da arte. O texto avança como uma conversa íntima, ora lírico ora prosaico, impregnado de saudade mas também de gratidão pelas inspirações colhidas no caminho. No fim da jornada, o leitor intui que para Patti Smith viajar e ler são formas de buscar sentido diante da finitude.
A volta ao dia em oitenta mundos, de Julio Cortázar
Cortázar, mestre do insólito e do lúdico, propõe em A Volta ao Dia em Oitenta Mundos uma viagem completamente diferente: uma circum-navegação pelas galáxias do imaginário. Neste livro, leva o leitor a uma odisseia caleidoscópica. Publicado em 1967, no auge da experimentação literária dos anos 60, este livro nasceu já com aura de ousadia: até o título é um piscar de olho irreverente a Júlio Verne (A Volta ao Mundo em Oitenta Dias ), prometendo aventuras não pelos continentes físicos, mas por “oitenta mundos” metafóricos dentro de um só dia.
O livro desafia qualquer classificação fácil – o próprio autor concebeu-o como um “livro-collage” que rompe as barreiras dos géneros literários, reunindo contos curtos, crónicas, ensaios, poemas em prosa, intercalados com fotografias, ilustrações e recortes gráficos. Esta miscelânea deliberada cria uma experiência de leitura caótica e surpreendente, em que fragmentos díspares são alinhados como peças de um mosaico multicolor. Cada “mundo” visitado nas páginas pode ser uma reflexão humorística, uma fantasia onírica ou uma crítica cultural, e o leitor é convidado a saltar de um para outro sem bússola, apenas guiado pela mão brincalhona de Cortázar. Ler este livro equivale a embarcar numa aventura através do mundo literário, poético e artístico do próprio autor: uma volta ao dia em oitenta universos particulares de Cortázar, cheios de criatividade irreverente.
Conhecido pelo seu estilo inventivo, Cortázar faz aqui uma homenagem à liberdade artística: vale tudo nesta jornada metafórica, desde dialogar com músicos de jazz até imaginar sociedades extravagantes ou filosofar sobre a escrita. A estrutura fragmentada exige do leitor uma postura ativa, quase como um explorador que monta as peças de um quebra-cabeças. No entanto, por trás da aparente leveza lúdica, há também a profunda erudição e humanidade de Cortázar. A Volta ao Dia em Oitenta Mundos celebra a riqueza do quotidiano e da imaginação, e mostra que cada pequena coisa – um jogo, um sonho, um instante – pode conter universos inteiros. Com esta obra, Cortázar expandiu os horizontes da literatura latino-americana, e provou que viajar nas páginas pode ser tão transformador quanto dar a volta ao globo.
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O livro desafia qualquer classificação fácil – o próprio autor concebeu-o como um “livro-collage” que rompe as barreiras dos géneros literários, reunindo contos curtos, crónicas, ensaios, poemas em prosa, intercalados com fotografias, ilustrações e recortes gráficos. Esta miscelânea deliberada cria uma experiência de leitura caótica e surpreendente, em que fragmentos díspares são alinhados como peças de um mosaico multicolor. Cada “mundo” visitado nas páginas pode ser uma reflexão humorística, uma fantasia onírica ou uma crítica cultural, e o leitor é convidado a saltar de um para outro sem bússola, apenas guiado pela mão brincalhona de Cortázar. Ler este livro equivale a embarcar numa aventura através do mundo literário, poético e artístico do próprio autor: uma volta ao dia em oitenta universos particulares de Cortázar, cheios de criatividade irreverente.
Conhecido pelo seu estilo inventivo, Cortázar faz aqui uma homenagem à liberdade artística: vale tudo nesta jornada metafórica, desde dialogar com músicos de jazz até imaginar sociedades extravagantes ou filosofar sobre a escrita. A estrutura fragmentada exige do leitor uma postura ativa, quase como um explorador que monta as peças de um quebra-cabeças. No entanto, por trás da aparente leveza lúdica, há também a profunda erudição e humanidade de Cortázar. A Volta ao Dia em Oitenta Mundos celebra a riqueza do quotidiano e da imaginação, e mostra que cada pequena coisa – um jogo, um sonho, um instante – pode conter universos inteiros. Com esta obra, Cortázar expandiu os horizontes da literatura latino-americana, e provou que viajar nas páginas pode ser tão transformador quanto dar a volta ao globo.
Danúbio, de Claudio Magris
Em Danúbio, do italiano Claudio Magris, a viagem assume a forma de um extenso périplo geográfico e histórico pelo coração da Europa. Neste livro monumental, publicado originalmente em 1986, Magris narra a travessia do continente seguindo o curso do rio Danúbio, desde as suas nascentes disputadas na Floresta Negra alemã até à foz no Mar Negro. Danúbio transcende o género do relato de viagem para se tornar um ensaio romanceado sobre a identidade cultural europeia. O autor utiliza o grande rio como fio de Ariadne: um guia líquido, para conduzir o leitor através do labirinto de povos, línguas e tradições da Europa Central, dissecando a complexa tapeçaria histórico-cultural desta região, revelando conexões inesperadas entre os lugares e refletindo sobre o destino das civilizações.
Magris empreende esta jornada em meados da década de 1980, nas vésperas de mudanças sísmicas no mapa político (o colapso do bloco de Leste, a reunificação europeia). Com sensibilidade quase profética, ele capta a atmosfera de um mundo prestes a transformar-se, mas que ainda guarda as marcas profundas do passado. Ao longo das margens do Danúbio desfilam cidades célebres e recantos esquecidos: a Viena imperial e a Budapeste romântica, as paisagens da antiga Jugoslávia ainda cicatrizadas por conflitos, os campos da Transilvânia envoltos em lendas, até as portas do Oriente na turbulenta região do delta. Cada capítulo dedica-se a um ponto dessa rota, e cada lugar visitado é apresentado como parte de um mosaico cultural transnacional, onde culturas e etnias diversas se entrecruzam e sobrevivem em camadas sobrepostas, que preservam identidades únicas. O Danúbio, neste sentido, torna-se personagem principal, o elo fluido que une e testemunha as histórias de impérios e revoluções, de poetas e tiranos, de mitos e massacres. Seguindo o curso do rio, Magris faz uma “viagem pela História e pelo imaginário do nosso continente”, e escreve com erudição e lirismo sobre guerra e paz, nacionalismo e cosmopolitismo, memória e esquecimento.
Livro singular, alguns classificaram-no como “romance”, outros como crónica de viagem, outros ainda como tratado cultural. Talvez seja tudo ao mesmo tempo. O certo é que Magris alcança algo notável: “pensa o mundo que atravessa” e, como poeta, “dá vida ao que pensa no momento em que o pensamento acontece”. Não é uma leitura para apressar, requer fôlego e contemplação, mas compensa com uma visão profunda e inspiradora da Europa. No fim deste curso, percebemos que o rio Danúbio, tal como as Parcas da mitologia, conduz os destinos dos povos que tocam as suas margens. E nós, leitores-viajantes, emergimos desta travessia com um sentido mais agudo da diversidade e da interconexão que unem a experiência humana.
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Magris empreende esta jornada em meados da década de 1980, nas vésperas de mudanças sísmicas no mapa político (o colapso do bloco de Leste, a reunificação europeia). Com sensibilidade quase profética, ele capta a atmosfera de um mundo prestes a transformar-se, mas que ainda guarda as marcas profundas do passado. Ao longo das margens do Danúbio desfilam cidades célebres e recantos esquecidos: a Viena imperial e a Budapeste romântica, as paisagens da antiga Jugoslávia ainda cicatrizadas por conflitos, os campos da Transilvânia envoltos em lendas, até as portas do Oriente na turbulenta região do delta. Cada capítulo dedica-se a um ponto dessa rota, e cada lugar visitado é apresentado como parte de um mosaico cultural transnacional, onde culturas e etnias diversas se entrecruzam e sobrevivem em camadas sobrepostas, que preservam identidades únicas. O Danúbio, neste sentido, torna-se personagem principal, o elo fluido que une e testemunha as histórias de impérios e revoluções, de poetas e tiranos, de mitos e massacres. Seguindo o curso do rio, Magris faz uma “viagem pela História e pelo imaginário do nosso continente”, e escreve com erudição e lirismo sobre guerra e paz, nacionalismo e cosmopolitismo, memória e esquecimento.
Livro singular, alguns classificaram-no como “romance”, outros como crónica de viagem, outros ainda como tratado cultural. Talvez seja tudo ao mesmo tempo. O certo é que Magris alcança algo notável: “pensa o mundo que atravessa” e, como poeta, “dá vida ao que pensa no momento em que o pensamento acontece”. Não é uma leitura para apressar, requer fôlego e contemplação, mas compensa com uma visão profunda e inspiradora da Europa. No fim deste curso, percebemos que o rio Danúbio, tal como as Parcas da mitologia, conduz os destinos dos povos que tocam as suas margens. E nós, leitores-viajantes, emergimos desta travessia com um sentido mais agudo da diversidade e da interconexão que unem a experiência humana.
Viagens, de Olga Tokarczuk
A escritora polaca Olga Tokarczuk oferece em Viagens uma meditação moderna sobre o nomadismo e o deslocamento. Lançada em 2007, esta obra desafia as convenções narrativas ao costurar dezenas de vinhetas, histórias curtas, reflexões e fragmentos de ensaio num conjunto fascinante. A autora alia ficção, memória e até elementos de ciência para investigar o que nos impele a estar em constante movimento. Não há uma trama linear ou protagonistas fixos; em vez disso, Viagens funciona como um caleidoscópio de experiências de viagem ao longo dos séculos, explorando o impulso errante do ser humano.
Algumas destas histórias são baseadas em eventos verídicos, outras são imaginadas, todas entrelaçadas pelo tema do viajar, como o momento, no século XIX, em que acompanhamos o traslado clandestino do coração do compositor Chopin, levado de Paris de volta para Varsóvia pela sua irmã, num gesto carregado de saudade patriótica. Através desta e de outras histórias e personagens, brilhantemente relatadas ou simplesmente imaginadas, Tokarczuk explora, ao longo dos séculos, o significado de se ser um viajante, um corpo em movimento, não apenas através do espaço, mas também do tempo. Cada fragmento contribui para uma teia de ideias sobre trânsito, fuga, migração e descoberta. O fio condutor de Viagens é, portanto, menos uma história e mais uma questão filosófica: por que nos movemos? Que revelações a errância traz sobre quem somos? Enquanto passeia por temas como a mortalidade e a transcendência.
Há ecos de W. G. Sebald, Milan Kundera, Danilo Kiš e Dubravka Ugrešic na abordagem fragmentária e erudita de Tokarczuk, mas a autora domina um registo rebelde e habilidoso que é muito seu. Viagens celebra o nomadismo não como fuga vazia, mas como uma forma de conhecimento: uma peregrinação contínua que tece passado e presente, ciência e mito, diário íntimo e grande História. Ao fechar o livro, o leitor sente-se parte dessa peregrinação, compreendendo um pouco mais a urgência humana de estar a caminho.
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Algumas destas histórias são baseadas em eventos verídicos, outras são imaginadas, todas entrelaçadas pelo tema do viajar, como o momento, no século XIX, em que acompanhamos o traslado clandestino do coração do compositor Chopin, levado de Paris de volta para Varsóvia pela sua irmã, num gesto carregado de saudade patriótica. Através desta e de outras histórias e personagens, brilhantemente relatadas ou simplesmente imaginadas, Tokarczuk explora, ao longo dos séculos, o significado de se ser um viajante, um corpo em movimento, não apenas através do espaço, mas também do tempo. Cada fragmento contribui para uma teia de ideias sobre trânsito, fuga, migração e descoberta. O fio condutor de Viagens é, portanto, menos uma história e mais uma questão filosófica: por que nos movemos? Que revelações a errância traz sobre quem somos? Enquanto passeia por temas como a mortalidade e a transcendência.
Há ecos de W. G. Sebald, Milan Kundera, Danilo Kiš e Dubravka Ugrešic na abordagem fragmentária e erudita de Tokarczuk, mas a autora domina um registo rebelde e habilidoso que é muito seu. Viagens celebra o nomadismo não como fuga vazia, mas como uma forma de conhecimento: uma peregrinação contínua que tece passado e presente, ciência e mito, diário íntimo e grande História. Ao fechar o livro, o leitor sente-se parte dessa peregrinação, compreendendo um pouco mais a urgência humana de estar a caminho.
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