Errâncias literárias

Zé Livreiro
@confissoesdumlivreiro
17 de março de 2025
Os livros são objetos estranhos: ao mesmo tempo que exigem de nós lentidão e quietude, pedindo-nos que nos sentemos e esqueçamos estímulos exteriores, cada vez mais rápidos e anestesiantes, conduzem-nos, por outro lado, ao movimento e à ação. Alguns vão além dessa característica intrínseca da literatura, a de nos pôr a deambular dentro dos nossos pensamentos, e transformam o ato de andar no seu eixo principal. Enquanto uns exploram de que forma a caminhada altera a nossa perceção da realidade, outros são feitos de pessoas que andam.

Caminhar – Uma Filosofia, de Frédéric Gros
Em Caminhar – Uma Filosofia, Frédéric Gros defende que andar não é apenas deslocação, é um estado de espírito. Inspirando-se em figuras como Nietzsche, que percorria montanhas durante horas, ou Kant, com as suas rotinas rigorosas, Gros mostra-nos que caminhar nos liberta das urgências modernas. Para o autor francês, há uma diferença grande entre andar por prazer e andar por obrigação. Aquele que anda sem pressa entra num plano diferente, uma espécie de tempo suspenso que propicia a introspeção e a criatividade. Todos já experimentámos a sensação de alívio ao dar uma volta para arejar as ideias, e no livro esse fenómeno é elevado a reflexão filosófica.
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Andar a Pé, de Henry David Thoreau
Esta visão sobre a importância da caminhada encontra ecos num livro pequeno demais para aquilo que nos ensina. Andar a Pé, de Henry David Thoreau, é visto como uma das obras mais importantes sobre o tema e considera a errância uma forma de resistência – um impulso quase instintivo de retorno à essência e à espiritualidade, muitas vezes afogadas pelos afazeres do dia a dia. Só na Natureza, longe das cidades e do progresso, é possível ao Homem alcançar o que é importante. Conhecido pelo seu espírito itinerante, Thoreau escolhia florestas e bosques para longas caminhadas, e é por esses trilhos que o livro nos leva. Escrito como quem passeia por uma floresta, Andar a Pé impele-nos a andar sem destino e a deixarmo-nos levar por um estado contemplativo e de libertação.
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Cidade Aberta, de Teju Cole
Julius, o protagonista de Cidade Aberta, de Teju Cole, caminha sem rumo em Nova Iorque, como Thoreau fazia nos bosques de Massachusetts, embora com um propósito diferente. Rodeado de pessoas, mas imerso no anonimato das grandes cidades, o jovem médico parece buscar nas suas deambulações por Manhattan uma forma de compreender o mundo e a si mesmo, ainda que, muitas vezes, os pensamentos que o acompanham o afastem, em vez de o aproximarem da sua própria essência. Ao contrário de Thoreau, Julius não caminha para se encontrar, mas para se perder nos seus pensamentos, e evita confrontos diretos com aquilo que prefere esquecer. A cidade, aberta e labiríntica, espelha a dispersão interior deste homem cheio de ambiguidades. Com uma escrita que evoca laivos da prosa de Sebald, em Cidade Aberta a caminhada surge como um ponto de partida, nunca como uma verdadeira chegada.
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Advento, de Gunnar Gunnarsson
Há, no entanto, outras formas de caminhar, mais próximas de uma peregrinação, como a jornada de Benedikt, protagonista de Advento, de Gunnar Gunnarsson. Enquanto Julius vagueia por Manhattan sem destino, Benedikt atravessa as montanhas geladas da Islândia com um objetivo muito claro: resgatar ovelhas perdidas antes que o inverno as condene à morte. Se um caminha para escapar a si mesmo, o outro avança movido por um sentido de dever, enfrentando o frio e a solidão com a determinação de um crente. Julius perde-se na vastidão da cidade, Benedikt encontra na Natureza um propósito. Toda a história é pautada por um sentimento de reverência em relação a algo superior e inefável, ligado tanto à sua missão quanto à sua ligação com a Natureza. E nós seguimos com ele, sem saber ao certo onde esta excursão nos levará.
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Folhas de Erva, de Walt Whitman
Walt Whitman deu muitos contributos na celebração do movimento e da conexão com a Natureza através da sua poesia. Contemporâneo de Thoreau, partilhava com ele a ideia de que o Homem só está completo no contacto com a natureza, mas, enquanto Thoreau enfatizava a meditação e o isolamento, Whitman valorizava a experiência sensorial, adotando uma atitude contemplativa em relação ao mundo. Folhas de Erva, a sua grande obra, gerou muita controvérsia pela linguagem utilizada e pelos temas abordados. Os seus poemas exaltam o corpo, o erotismo e a liberdade do homem perante os outros, celebram a Natureza e os sentidos. Com recurso a versos livres e métrica irregular, Whitman canta a igualdade entre os homens e a fusão entre o espírito e a matéria. Andar, neste processo de elevação, é o ato primordial que nos liga ao mundo e nos permite alcançar a plenitude.
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O Senhor dos Anéis, de J.R.R. Tolkien
Falar de O Senhor dos Anéis sem falar de caminhada é tirar ao épico de J.R.R. Tolkien o seu significado. Mais do que ogres, magia e a luta do bem contra o mal, nesta aventura é o ato de caminhar que transforma os personagens. A travessia de Frodo e Sam até Mordor amadurece-os. Não caminham por prazer ou para se perder, como Thoreau, Julius e Benedikt. Caminham porque não há outra escolha, e nesse processo criam uma relação forte. Sem o apoio um do outro, Frodo e Sam não teriam conseguido seguir em frente. A partilha do peso da jornada fortalece-os, e é na amizade que encontram forças para continuar. A caminhada, aqui, é mais do que um percurso, é uma afirmação de esperança, persistência e transformação.
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Atrás de toda a caminhada, há sempre uma busca por algo que falta, e a literatura é uma boa companheira nessa viagem. Ajuda-nos na tarefa sempre incompleta de tentar perceber o que nos rodeia. Como diz Gros no início do seu livro, «caminhar não é um desporto», não é algo que se aprende, está dentro de nós, e é nesse movimento físico e mental que nos aproximamos de nós mesmos e nos deparamos com aquilo que está para além do imediato.

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