Édouard Louis

Por Álvaro Curia
@literacidades
2 de janeiro de 2025
Édouard Louis I Foto © Heike Huslage-Koch, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons
Olhar a violência nos olhos, sem a temer. Desfazendo-a, expondo-a, revirando-lhe as entranhas e atingindo-a no coração. A violência sem subterfúgios, sem embelezamentos burgueses para não ferir as almas sensíveis. A lógica da opressão desmascarada, o grande capital como forma de apagamento, a classe social como território hermético, de onde nunca se sai porque há sempre um gesto, uma fala, uma atitude que denuncia. Um dos mais proeminentes autores contemporâneos que, se não lhe tolherem a voz, marcará, sem dúvida, a literatura deste século.
O HOMEM
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Proveniente de uma pequena cidade operária do Norte de França, Édouard chamava-se Eddy, graças ao fascínio do seu pai por ficção americana. As condições de vida eram miseráveis. Em seu torno, o álcool, a brutalidade, uma cadeia de violência que se iniciava nos patrões da fábrica onde o pai trabalhava e chegava até ele, tendo a sua mãe e irmão de permeio. A miséria que não o era apenas no que se refere ao que dispunham para sobreviver, mas que se notava também nos ausentes hábitos de higiene, nos dentes podres, na promiscuidade sexual e na alimentação.
À leitura de Para Acabar de Vez Com Eddy Bellegueule seguiu-se a visualização da entrevista concedida pelo autor ao programa Roda Vida, aquando da sua deslocação ao Brasil, para participar na Feira Literária Internacional de Paraty. O livro caiu nas minhas leituras como tudo aquilo de que precisava, não apenas enquanto leitor, mas também enquanto escritor. Porém, foi sobretudo pela entrevista a que assisti que passou a ser desmedida esta minha vontade de falar de Édouard Louis. É que parecia que nos estávamos a completar nas frases.
Édouard foi um menino homossexual no meio de toda aquela miséria humana. As agressões na escola, na família, entre os amigos. A necessidade de esconder o seu ínfimo gesto, porque tudo denuncia: as mãos, o pentear o cabelo, o riso, os passos. Nele juntam-se-lhe as marcas de uma classe social desprestigiada, que a burguesia não gosta de pensar como real, para que com ela não tenha de lidar de perto.
A OBRA
O autor explica que as classes dominantes não gostam de autoficção, havendo inclusive a ideia que é uma “moda” atual, a escrita biográfica. Segundo Louis, isto acontece apenas porque são os marginalizados que a escrevem: as mulheres, os negros, os homossexuais, os pobres. Os burgueses não têm nada de interessante para contar, as suas vidas repetem-se de geração em geração, vazias. A escrita de Louis é, e será, sempre autobiográfica e ele nota com sarcasmo que, aos escritores de ficção, nunca se lhes pergunta se escreverão ficção para sempre.
Na sua opinião, este desdém existe porque a burguesia se apoderou da literatura para que a entretenha, recusando incomodar-se com livros como Quem Matou o Meu Pai, onde o regresso do filho trânsfuga à casa paterna demonstra o fosso colossal que existe na sociedade francesa.
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Muito crítico da classe dominante, Louis acusa-a de querer toda a arte para si, apropriando-se do teatro, outrora entretenimento das massas, mas também recusando-se a que outros falem e discutam a própria literatura. Recorda o incómodo com que os grandes literatos reagem ao facto de a crítica, a opinião e o livro terem saltado o muro das academias das capitais e serem hoje falados em redes sociais, sem os constrangimentos que os mantinham um feudo de uma elite que se ia lendo e publicando entre si.

É por estas observações que outro dos seus livros publicados em Portugal, História da Violência, desmascara a farsa da liberdade no tempo atual, explicando que só é realmente livre quem domina. A título de exemplo, fala do facto de os seus pais, os seus irmãos, vizinhos, amigos e colegas da cidade de onde provinha, estarem incondicionalmente sujeitos à política. Quando o governo resolveu cortar os apoios sociais, foi o pai de Édouard, inválido devido a um acidente de trabalho, que não sabia se tinha dinheiro para comer naquele dia, e não os políticos que aprovaram esse corte. Esses não são afetados pelas decisões que eles próprios tomam.
A FAMA
Não é à toa que Édouard Louis não é bem recebido pela elite que tem dominado o mundo cultural francês. Segundo o próprio, aquilo que diz e que escreve fere a direita, porque lhe imputa culpas diretas na miséria dos outros, mas também a esquerda, porque desfaz a ideia romântica do trabalhador estoico, pronto para grandes manifestações. Nos seus livros, Louis retrata uma classe trabalhadora amorfa, seduzida pela extrema-direita, pelo capitalismo desenfreado e incapaz de quebrar um círculo de violência em que cada vez mais se vai deteriorando e onde a opressão se faz sentir de forma cada vez mais grave.
Comparado a Samuel Beckett, pela forma como fala livremente do corpo e da sua imobilidade, e de quem sugiro este Jogo do Fim, o autor explica o seu fascínio por Toni Morrison, em particular pelo seu livro Beloved. Louis teve o privilégio de almoçar com a escritora, que faleceu em 2019. Embora sendo mulher, negra, heterossexual e idosa e ele homem, branco, homossexual e jovem, teve com ela uma conexão imediata, porque ambos se encontraram nesse tal território da violência.
No Brasil, Edouard Louis encheu salas e foi um dos escritores mais vendidos. Por cá, parece-me que ainda agora estamos a descobrir a sua obra, mas vale a pena falar muito sobre ela e pensar neste jovem escritor de trinta e dois anos, que em muito menos tempo já disse, e escreveu, aquilo que muitos não se atreveram a dizer a vida toda. E, claro, essa coragem incomoda.

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