One-Hit Wonders literários
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@confissoesdumlivreiro
7 de maio de 2025
As músicas Tainted Love, Macarena, Mambo No. 5 e Ice Ice Baby têm muitas coisas em comum. Tocaram até à exaustão nas rádios, entraram no ouvido de milhões de pessoas e ficaram gravadas na memória coletiva. São exemplos de one-hit wonders, canções que se tornam tão grandes que acabaram por eclipsar tudo o resto que os seus autores alguma vez fizeram. Na literatura, este fenómeno também existe. Alguns livros tornam-se tão marcantes que o escritor não consegue ultrapassá-los e fica condenado a viver à sombra da sua criação, como se tivesse sido engolido por ela.
Flores para Algernon, de Daniel Keyes
Daniel Keyes escreveu alguns livros durante a vida, mas ficará sempre associado a um deles, ou melhor, a dois que partilham o mesmo título e a mesma premissa. Flores para Algernon começou por ser um conto, publicado em 1959, mas teve uma receção tão forte junto dos leitores que o escritor norteamericano decidiu transformá-lo em romance. Escrito em forma de diário, acompanhamos a ascensão e queda de Charlie, um homem que nasce com uma deficiência mental e que, graças a uma cirurgia experimental, se transforma durante algum tempo num génio. Ao lermos o seu diário, apercebemo-nos não só do crescimento intelectual do protagonista, que no início escreve textos cheios de erros e sem noção da realidade que o rodeia, como do confronto doloroso com a memória do passado, a falta de afeto e a exclusão. À medida que desenvolve as suas capacidades, dá-se conta de como era tratado antes da cirurgia, pelo simples facto de ter um problema. É esse olhar em retrospectiva que torna o livro tão comovente: o testemunho de uma pessoa que só queria ser igual às outras, mas que acaba por ver demais.
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O Monte dos Vendavais, de Emily Brontë
O Monte dos Vendavais, único romance de Emily Brontë, é um exemplo perfeito de one-hit wonder na literatura. Na época em que foi publicado, era comum as escritoras optarem por usar pseudónimos masculinos para serem levadas a sério no meio literário, profundamente misógino. Brontë não foi excepção e escolheu o nome Ellis Bell. Mesmo assim, o livro não mereceu uma crítica unânime e gerou alguma controvérsia devido à violência emocional que atravessa a narrativa, com personagens movidas por ódio e paixão, e um ambiente sombrio que colidia com o idealismo romântico da época vitoriana. Heathcliff e Catherine são figuras tão intensas quanto trágicas. Emily morreu pouco tempo depois da publicação, sem escrever outro romance. Ainda assim, com uma só obra, deixou uma marca indelével na forma como concebemos o amor, a obsessão e a natureza humana na literatura.
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Drácula, de Bram Stoker
Há casos em que a obra engole o seu criador, ou melhor, morde-lhe o pescoço e faz dele o seu lacaio. Foi o que aconteceu entre o escritor irlandês Bram Stoker e o seu livro, Drácula. Mesmo tendo escrito mais de dez romances, contos e peças de teatro, é difícil nomear outra obra de Stoker. A razão é relativamente simples de entender: mais do que uma personagem de um livro, o conde da Transilvânia, conhecido pelo seu fetiche por pescoços alheios, transformou-se num arquétipo; nasceu numa página de papel, mas escapou-lhe triunfalmente e passou a existir como figura autónoma no cinema, na banda desenhada, em brinquedos, anúncios e conversas que não têm nada que ver com literatura. Escrita de forma epistolar e algo fragmentada, a história está pejada de tensão sexual, política e religiosa, abriu caminho para novas formas de contar histórias e é um dos romances que ajudaram a afirmar o horror como género literário popular.
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Doutor Jivago, de Boris Pasternak
O caso de Boris Pasternak é irónico e trágico. Como poeta e tradutor, era um nome reconhecido e adorado na Rússia, mas, quando decidiu sair da sua zona de conforto e escreveu Doutor Jivago, a sua única incursão no romance, tudo mudou. A história do livro centra-se na figura de Iuri Jivago, um médico e poeta dividido entre duas mulheres durante o turbilhão da Revolução Russa. É um romance sobre perda, esperança e identidade, onde a liberdade individual colide com a opressão do Estado. Depois de um caminho penoso até à sua publicação fora do país natal, a obra e o autor acabaram rejeitados pelos censores soviéticos. Pasternak venceu o Nobel da Literatura em 1958, mas foi forçado a recusá-lo sob ameaça de exílio e só algumas décadas depois da sua morte é que o seu filho foi autorizado a viajar até à Suécia para receber o Nobel atribuído ao pai. A obra, importante na vida de tantos leitores, marcou de forma negativa os últimos anos do seu autor.
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Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio
Também existem casos portugueses de one-hit wonders. Vitorino Nemésio foi poeta, ensaísta, académico e uma presença assídua na televisão nacional, mas a partir de 1944 ficou conhecido quase exclusivamente por uma coisa: ter escrito o livro Mau Tempo no Canal. O romance acompanha Margarida, uma jovem dividida entre o dever familiar e o desejo de liberdade. É um retrato vívido da insularidade, do tempo suspenso e das pressões invisíveis que moldam as vidas. O livro revela a maturidade da escrita de Nemésio e condensa características que atravessam toda a sua produção literária. Apesar de ter escrito dezenas de livros dos mais diversos géneros, foi com este que o escritor açoriano conseguiu tocar algo profundo no país e na identidade coletiva.
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Importa lembrar que nenhum destes autores fracassou. Escrever uma obra que eclipsa tudo o resto é, na verdade, um feito raro. Cada um destes livros, e muitos outros, tornou-se um farol que guiou leitores, definiu percursos e deixou uma marca duradoura em quem o escreveu. Em vez de desmotivar, o seu brilho deve servir como convite para explorar o restante universo do escritor.