A arte de ler em comboios e salas de espera
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6 de maio de 2025
Há quem leia entre paragens — literalmente. Na sala de espera do centro de saúde, no banco desconfortável da estação de Entrecampos, Tunes, São Bento, ou no intervalo entre nomes invocados num balcão de atendimento, enquanto aguarda a sua vez para renovar o cartão de cidadão.
Não o fazem para cumprir metas anuais de leitura: fazem-no porque ali, nesse tempo sem dono, o livro é uma forma de estar presente — talvez a única.
Estes são leitores invisíveis: não partilham fotografias de lombadas, não sublinham a caneta amarelo fluorescente frases bonitas para publicar depois nas redes sociais. Leem porque precisam, porque aprenderam a converter o tempo disponível em reclusão interior.
Para estes leitores, os livros funcionam como objetos portáteis de lucidez. Não lhes importa se não estão no top de vendas ou se têm capas vistosas, instagramáveis. Têm, isso sim, uma estrutura que se acomoda aos ritmos da espera: contos, ensaios curtos, capítulos que não imploram continuidade, mas oferecem densidade.
Não o fazem para cumprir metas anuais de leitura: fazem-no porque ali, nesse tempo sem dono, o livro é uma forma de estar presente — talvez a única.
Estes são leitores invisíveis: não partilham fotografias de lombadas, não sublinham a caneta amarelo fluorescente frases bonitas para publicar depois nas redes sociais. Leem porque precisam, porque aprenderam a converter o tempo disponível em reclusão interior.
Para estes leitores, os livros funcionam como objetos portáteis de lucidez. Não lhes importa se não estão no top de vendas ou se têm capas vistosas, instagramáveis. Têm, isso sim, uma estrutura que se acomoda aos ritmos da espera: contos, ensaios curtos, capítulos que não imploram continuidade, mas oferecem densidade.
A Senhora do Cãozinho, de Anton Tchékhov
Um exemplo discreto e incontornável: A Senhora do Cãozinho, de Anton Tchékhov. Em poucas páginas, o autor apresenta uma história de implicações profundas: um homem casado conhece uma mulher na Crimeia, passeiam, falam pouco — a narrativa resiste ao melodrama, e é precisamente essa contenção que a torna inesquecível. Publicado pela primeira vez em 1899, este conto é considerado um dos mais perfeitos da literatura universal, explora temas como o desejo, o desencanto e a força subtil das ligações humanas.
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Bola de Sebo, de Guy de Maupassant
Outro companheiro para levar consigo: Bola de Sebo, de Guy de Maupassant. Um grupo de passageiros partilha uma carruagem durante a guerra franco-prussiana. Entre eles, uma prostituta — generosa, solidária — contrasta com os demais, representantes de uma moral aparente que depressa se revela interesseira. Maupassant não redime nem condena, mas expõe, com precisão cirúrgica, a forma como a conveniência molda os valores. Escrita em 1880, esta novela atualíssima (essa magia dos Clássicos!) é um retrato impiedoso da hipocrisia burguesa e uma das obras que consagrou o autor como mestre do conto realista.
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Gerir o seu Dia a Dia, de Jocelyn K. Glei
Para quem procura uma leitura “menos literária” e mais pragmática, Gerir o seu Dia a Dia, de Jocelyn K. Glei, proporciona reflexões breves sobre criatividade e organização. Reunindo conselhos de escritores, artistas e investigadores contemporâneos — como Seth Godin, Steven Pressfield ou Leo Babauta —, este livro propõe estratégias práticas para lidar com o excesso de informação, a pressão da produtividade e a fragmentação da atenção. Não há fórmulas mágicas, mas há ideias úteis para quem escreve, pensa ou simplesmente tenta organizar o caos diário.
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Criatividade, de John Cleese
Na mesma linha, Criatividade, de John Cleese, desmonta o mito do artista iluminado. Com humor britânico e clareza desconcertante, o autor explica como o pensamento criativo nasce de um espaço protegido, sem julgamentos prematuros. Breve e acessível, este pequeno livro — escrito por um dos fundadores dos Monty Python — resume décadas de experiência em televisão, escrita, teatro e ensino criativo. É uma leitura que estimula e que descomplica sem banalizar.
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Desinformação, de Dan Ariely
Desinformação, de Dan Ariely, propõe outro tipo de treino: o da atenção crítica. Ao explorar os mecanismos através dos quais acreditamos em ideias falsas, o autor obriga-nos a olhar para dentro e a perceber quantas vezes tomamos decisões com base em enviesamentos invisíveis. Baseado em estudos de psicologia comportamental e experiências concretas, Ariely desmonta narrativas falsas e alerta para os perigos da manipulação mediática, do autoengano e da polarização crescente. Um ensaio urgente para quem vive, como todos, rodeado de dados — e de distorções.
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Amanhecer na Ceifa, de Suzanne Collins
Por fim, Amanhecer na Ceifa, de Suzanne Collins, traz a intensidade da ficção distópica para os momentos de espera mais longos. É o volume final da trilogia Os Jogos da Fome, por isso pede algum contexto — mas, para quem conhece a saga, é um reencontro certeiro. Collins escreve com tensão, mas também com consciência política. A sua protagonista, Katniss, carrega nas costas mais do que um enredo de ação: transporta a pergunta sobre o custo real da liberdade. Neste livro, o espetáculo do combate dá lugar à estratégia, à dúvida moral, à dor da reconstrução. É uma leitura que vai além do público juvenil, convocando questões universais sobre poder, sacrifício e justiça.
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Todos estes livros partilham algo: não exigem isolamento absoluto nem tempo ilimitado. Permitem ser interrompidos, sem que isso os fragilize, talvez porque nascem da mesma matéria que compõe a vida real — feita de fragmentos, hesitações, intervalos.
Ler em lugares públicos é, em certo sentido, um ato íntimo, é escolher entrar noutro tempo sem sair deste, reclamar que nem todo o tempo disponível precisa de ser desperdiçado.
E talvez, ao folhear uma página no meio do ruído, se descubra que a espera, afinal, pode ser habitada — e até transformadora.
Ler em lugares públicos é, em certo sentido, um ato íntimo, é escolher entrar noutro tempo sem sair deste, reclamar que nem todo o tempo disponível precisa de ser desperdiçado.
E talvez, ao folhear uma página no meio do ruído, se descubra que a espera, afinal, pode ser habitada — e até transformadora.