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O Que Há-de Voltar a Passar

de António Mega Ferreira

editor: Assírio & Alvim, outubro de 2003
Depois de concluída a sua missão na Expo 98, António Mega Ferreira prometeu que iria dedicar-se à escrita. E, como afirmava ao JL (15/10/03), está "a cumprir, com todo o prazer e alegria". Já lá vão um livro de contos, " A Expressão dos Afectos", ao qual foi atribuído o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco 2002, uma novela, "Amor", um livro que reúne textos sobre Camilo, Pascoaes, Borges, Yourcenar, etc., "Retratos de Sombra", e uma selecção de textos e desenhos de Pascoaes (sobre o qual organizou uma magnífica exposição no cinquentenário da sua morte e prepara uma fotobiografia a ser publicada ainda este ano), "Anjos e Fantasmas".
Chega agora "O Que Há-de Voltar a Passar", um livro de carácter fragmentário, que se vai construindo a si próprio, e que é também "o mais pessoal dos [seus] livros" (JL, ib.). Isto, apesar de o autor afirmar que não se pode confundir com o narrador, isto é, com tudo aquilo que o narrador pensa. É um 'work in progress', onde o narrador tem como interlocutor Jano, o deus das duas cabeças (que, por isso, pode olhar para trás e seguir em frente), onde há uma forte tentação pelo aforismo (há mesmo um texto que se chama 'Pequena teoria do aforismo', que, como dizia Goehte, citado pelo autor na mesma entrevista, "mesmo quando só parece divertido", [...]é mais do que isso, é algo que nos põe a pensar, levanta uma dúvida").

O QUE HÁ-DE VOLTAR A PASSAR

Je sais qu'ici il ne se passe rien, il ne passe personne. Mais moi-même, il y a des moments où je me mets à fixer le tournant de la route malgré moi.
Julien Gracq

À distância, para lá da curva da estrada, ladrou um cão. Às vezes, depois (quanto tempo depois?), a figura de um homem parecia recortar-se na decadência do dia. Era quase como se fosse noite. Aproximava-se, talvez, mas como se estivesse imóvel, sempre caminhando, ligeiramente inclinado para a frente, é talvez o peso de qualquer coisa que traz atravessada sobre os ombros (uma mochila? um molho de lenha? um animal doente?). Finquei os cotovelos na janela, a voz da minha mãe gritou qualquer coisa na cozinha, o homem, imagino, continua a avançar com uma regularidade inquietante, a mão direita segurava um volume (uma trouxa? um fardo? um saco de viagem?). Observava-o fixamente, cravava nele o olhar querendo surpreender-lhe o traço de um sobressalto, teria medo de mim?, pergunto-me, mas eu, o que fica, o que se debruça da janela para ver quem passa, seria temível? Poderia dizer-se que inspirava receio a alguém? Mais perto de mim, agora mais perto, o homem não fazia nada, apenas caminhava, era um movimento quase mecânico, somente a figura se movia, podia não ser um homem, ou ninguém, apenas uma forma por dentro da noite, traz no rasto uma matilha de cães indiferentes, ele aos cães, e eu debruço-me sobre a obscuridade, gostaria de a poder afastar como uma cortina, ficar de dentro com a mão a segurar as pregas, a ver, lá fora, o homem que vai a passar. Então, quando chegava em frente da janela, havia um brusco momento de pânico. Eu recuava dois passos, metia-me para dentro, o homem passava, sem me ver, sem olhar para mim, e era essa estranha indiferença que me apavorava, todos os dias, à mesma hora, porque todas as coisas passam sem nos ver, e nós a elas, sabemos que estão ali e gostaríamos de as ter para nós, evidentemente vistas, mas as coisas são alheias, tudo será apenas o rasto do que passou e a secreta esperança de que volte a passar, para uma vez mais percebermos que não conseguimos ver o que julgamos conhecer de cor. Mesmo vasculhando na memória, não consigo dizer se era de noite ou de dia o tempo que o homem levava a passar. Mas é sobre um fundo escuro que melhor imagino os seus gestos, o ladrar dos cães, o volume sobre os ombros, o chapéu caído sobre os olhos. De noite, é quando o vejo melhor.

O QUE HÁ-DE VOLTAR A PASSAR

Je sais qu'ici il ne se passe rien, il ne passe personne. Mais moi-même, il y a des moments où je me mets à fixer le tournant de la route malgré moi.
Julien Gracq

À distância, para lá da curva da estrada, ladrou um cão. Às vezes, depois (quanto tempo depois?), a figura de um homem parecia recortar-se na decadência do dia. Era quase como se fosse noite. Aproximava-se, talvez, mas como se estivesse imóvel, sempre caminhando, ligeiramente inclinado para a frente, é talvez o peso de qualquer coisa que traz atravessada sobre os ombros (uma mochila? um molho de lenha? um animal doente?). Finquei os cotovelos na janela, a voz da minha mãe gritou qualquer coisa na cozinha, o homem, imagino, continua a avançar com uma regularidade inquietante, a mão direita segurava um volume (uma trouxa? um fardo? um saco de viagem?). Observava-o fixamente, cravava nele o olhar querendo surpreender-lhe o traço de um sobressalto, teria medo de mim?, pergunto-me, mas eu, o que fica, o que se debruça da janela para ver quem passa, seria temível? Poderia dizer-se que inspirava receio a alguém? Mais perto de mim, agora mais perto, o homem não fazia nada, apenas caminhava, era um movimento quase mecânico, somente a figura se movia, podia não ser um homem, ou ninguém, apenas uma forma por dentro da noite, traz no rasto uma matilha de cães indiferentes, ele aos cães, e eu debruço-me sobre a obscuridade, gostaria de a poder afastar como uma cortina, ficar de dentro com a mão a segurar as pregas, a ver, lá fora, o homem que vai a passar. Então, quando chegava em frente da janela, havia um brusco momento de pânico. Eu recuava dois passos, metia-me para dentro, o homem passava, sem me ver, sem olhar para mim, e era essa estranha indiferença que me apavorava, todos os dias, à mesma hora, porque todas as coisas passam sem nos ver, e nós a elas, sabemos que estão ali e gostaríamos de as ter para nós, evidentemente vistas, mas as coisas são alheias, tudo será apenas o rasto do que passou e a secreta esperança de que volte a passar, para uma vez mais percebermos que não conseguimos ver o que julgamos conhecer de cor. Mesmo vasculhando na memória, não consigo dizer se era de noite ou de dia o tempo que o homem levava a passar. Mas é sobre um fundo escuro que melhor imagino os seus gestos, o ladrar dos cães, o volume sobre os ombros, o chapéu caído sobre os olhos. De noite, é quando o vejo melhor.

O Que Há-de Voltar a Passar

de António Mega Ferreira

Propriedade Descrição
ISBN: 978-972-37-0845-5
Editor: Assírio & Alvim
Data de Lançamento: outubro de 2003
Idioma: Português
Dimensões: 145 x 205 x 14 mm
Encadernação: Capa mole
Páginas: 176
Tipo de produto: Livro
Coleção: A Phala
Classificação temática: Livros em Português > Literatura > Outras Formas Literárias
EAN: 9789723708455
Idade Mínima Recomendada: Não aplicável
António Mega Ferreira

António Mega Ferreira (25 de março de 1949, Lisboa - 26 de dezembro de 2022, Lisboa) foi escritor, gestor e jornalista. Estudou Direito e Comunicação Social, foi jornalista no Jornal Novo, no Expresso, em O Jornal e na RTP, onde chefiou a redação da Informação do segundo canal. Foi chefe de redação do JL — Jornal de Letras, Artes e Ideias. Fundou as revistas Ler e Oceanos. Chefiou a candidatura de Lisboa à Expo’98, de que foi comissário executivo. Foi presidente da Parque Expo, do Oceanário de Lisboa e da Atlântico, Pavilhão Multiusos de Lisboa, S.A. De 2006 a 2012, presidiu à Fundação Centro Cultural de Belém. De 2013 a 2019, desempenhou as funções de diretor executivo da AMEC/Metropolitana. Tem cerca de 40 obras publicadas, entre ficção, ensaio, poesia e crónicas. Em 2022, a sua obra Crónicas Italianas (Sextante Editora, 2021) foi distinguida com o Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga.

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