Um conto por dia.

Leitura altamente escaldante. Não nos responsabilizamos.
14 de agosto de 2017
Intimidades
Capa do livro Intimidades de onde foi extraído este conto
MÓNICA
Mónica gostava que ele lhe metesse as mãos entre as pernas enquanto ainda estava vestida: os dedos a afastarem a seda das meias, a tentarem alargar o cinto de ligas, a deslizarem na pele macia das coxas, a insinuarem-se já pelo caminho dos pêlos até à humidade quente dos lábios grossos, salientes e largos da vagina, onde sentia pulsar um perturbante coração afastado.
Ou uma boca cheia de sede.
Deixava que as pernas subissem, os pés roçando os ombros, mas primeiro como se hesitassem, numa espécie de abraço em torno do pescoço; depois, desciam de novo até aos ombros, abertas. Oferecendo-se, enquanto Pedro começava a lamber-lhe, ao de leve, as virilhas com o seu cheiro a fruto; um pequeno suor salgado a insinuar-se por dentro da saliva, dissolvendo-se na língua. E o sussurro, o gemido, eram tão baixos que ninguém saberia determinar de qual dos dois partiam.
Assim, vestidos.
Desde o princípio, como gostava, logo depois de chegarem ao quarto da pensão pobre para onde ele a arrastava, ambos de respiração suspensa, subindo depressa os degraus da escada nauseabunda, penumbrosa, madeira lascada, gasta pelo tempo. Pedro, excitado, parava a meio para se esfregar nela, e Mónica quase gritava de gozo, prazer que isso despertava nela, curvada sobre o intenso cheiro almiscarado que o pescoço dele guardava, odor a cortar-lhe a respiração, entontecida e sôfrega.
«Não me quero vir já...» murmurava ele a morder-lhe os pulsos febris, breves, algemados pelos seus dedos à parede esburacada. E continuavam subindo a escada, sem fôlego, até ao último andar, patamar onde aparecia uma mulher gorda e pintada, que nas primeiras vezes lhe perguntou a idade - «por causa da polícia», explicou; mas que nos meses seguintes se limitava a conduzi-los, sem palavras, até ao quarto que lhes alugava, quase vazio. Uma cama, uma cadeira, um candeeiro e um espelho chegavam-lhes durante as horas que ali passavam, nas quais só queriam beber-se, devorar-se um ao outro, misturando os sucos, o cuspo, o prazer, partilhando a posse.
Às vezes, Mónica gritava.
Pedro punha-lhe então sobre a boca a palma da mão, que ela mordia, e explodia dentro dela, o corpo muito magro erguendo-se, febril, enquanto a via continuar ainda e ainda revolvendo-se, os dedos excitando-os dentro de si, enquanto se ia masturbando ao mesmo tempo. (Escutava Mahler quando anoitecia.
Enovelada, curvada sobre si mesma, o crepúsculo a misturar-se com o mágico lado interior das sinfonias.)
Algumas tardes chorava.
Em surdina.
E tudo o resto apagava-se à sua roda: só ela e os anjos de armadura negra.)
II
Fora Mónica que conquistara Pedro, que o levara para a cama; que o desejara logo, mal o descobrira junto da janela, a olhar o crepúsculo de uma primavera tardia e ventosa, em casa de uns amigos comuns perto da Fonte Luminosa.
Fascinara-a a cor escura da sua pele, o olhar enlanguescido, fugidio, a extrema magreza do corpo alto, a tremura acentuada das mãos longas, o cabelo sedoso, caído sobre a testa.
Primeiro desejou impacientemente tocar-lhe o peito, depois imaginou-lhe as nádegas ásperas, os ossos salientes das ancas, o sexo grande. E o seu corpo enrijeceu: os bicos dos seios, a língua, o clitóris, um sumo grosso a formar-se já no interior da vagina. E uma curtíssima vertigem fê-la vacilar um tudo nada, acabando por se encostar no vão da janela, onde os dois permaneceram imóveis, sentindo apenas a aproximação um do outro.
Os fluidos um do outro.
Mónica avançou os dedos até ao seu braço apoiado no peitoril estreito e procurou-lhe o calor debaixo da camisa branca que ele usava, indo através do punho lasso sob o qual a mão trepou depois sem custo, vistoriando, a tomar conhecimento da sua temperatura. E ficaram a olhar-se, enquanto o ar parecia tornar-se pastoso e espesso, num tempo que entretanto tinha parado. Viu-o estremecer e afastar-se, esquivo, admirado; como se fugisse, como se não quisesse continuar a ser tocado, tomado, à vista de todos.
Inclinou-se então para a frente, prendendo-o por instantes, puxando-o para si, e curvando-se passou-lhe os lábios pelas pálpebras: uma e depois a outra. Sentindo-lhe pela primeira vez o cheiro a madeira ainda verde e a goivo, tendo no seu crivo um travo mesclado, matizado pela canela.
Sabia que isso a iria enlouquecer.
Pressentindo a vertigem que se aproximava, apoiou-se ao parapeito de mármore, muito pálida, encobertos os dois pelo cortinado espesso, pesado, corrido até meio.

(Mahler. Mónica tentava isolar-se, quando ouvia Mahler: o rosto escondido pelos punhos cerrados, a testa apoiada nas palmas das mãos. Quase gemia, mas ainda calava a suspeita daquilo que no seu coração se acoitava. Mahler. Os arcanjos sobrevoavam, perto: escutava-lhes o ruído impreciso das asas, a misturar-se, breve, leve, cumprindo destinos. O de Mahler e o seu próprio, ligados apenas por instantes.)
III

No dia seguinte procurou-o.
Falou-lhe de Mahler, de Marguerite Duras, de Sylvia Plath, de Anaïs Nin.
Da loucura feminina.
Da paixão.
De como quando era pequena convivia com anjos, que lhe apareciam em casa, roçando as paredes, ou perto dos muros, que lambia.
Pedro era médico, céptico, introvertido. Gostava de Mozart, lia Carlos de Oliveira, Alberto Lacerda, Manuel Laranjeira, Camus.
Mónica retornava exaltada a «O Monte dos Vendavais», a «Ariel», a «Orlando», sabendo de cor páginas de «Le Ravissement de Lol. V. Stein». Em certas madrugas de desespero, revia cenas de «A Dama de Xangai», até desentender a própria imagem que ali encontrava reflectida, assustada consigo.
Em nada os dois eram parecidos. Quando se entusiasmava a defender uma ideia, uma teoria, uma posição de princípio, ele sorria trocista e ela então teimava em fechá-lo nos seus braços envolventes, nervosos.
Durante semanas foi esse o jogo: Mónica queria levá-lo para a cama, sem palavras, Pedro escapava-lhe, demorando-se, fingindo ignorá-la, distraído da sua sedução, jamais no entanto a perdendo de vista.
Um dia Mónica fez parar o elevador onde iam sozinhos, ao entreabrir a porta entre dois andares. Empurrou-o em seguida para o tapete, montou-o, e quando Pedro tentou beijá-la, esquivou-se; sentiu-o ceder e riu enquanto lhe afagava o pénis erecto, que primeiro acariciou sem pressa debaixo do tecido das calças, tirando-o só depois para fora, escuro e comprido, tal como o imaginara. Ouviu-o arfar debaixo de si quando lhe fez deslizar o sexo entre as cuecas que puxara para o lado, e o meteu um segundo dentro de si, sem ser até ao fundo.
Depois largou-o, e de um salto fechou a grade do elevador, carregou de novo no botão paa continuarem a descer, mal tendo tempo de alisar o cabelo e a saia, e ele de se levantar, aturdido, antes de ela correr para a rua e deixá-lo para trás, parado, respiração cortada.
No dia seguinte Pedrou telefonou-lhe para dizer-lhe que tudo aquilo era loucura, histeria, perigo, que seria melhor não se tornarem a ver. Nunca mais. Mónica não respondeu e desligou. Era quase noite quando o descobriu sentado numa esplanada da Alameda, o jornal dobrado ao lado da chávena de café por beber. Sentou-se à sua frente e ficaram quietos no final da tarde, escuridade que se ia adensando, agreste. Reparou no seu ar abandonado, a cara estreita de malares salientes, os lábios tão negros que pareciam azulados. Descalçou um dos sapatos e procurou com o pé o calor das suas coxas, apercebendo-se logo do seu recuo, tímido, olhar atento a querer sondar se alguém estaria a dar por aquilo que se passava debaixo da mesa: pé ágil, insistente, descendo e subindo entre as suas pernas.
Sem se importar, Mónica continuou a mover o pé, lentamente: para baixo e para cima, doce, a sentir a aspereza do tecido das calças, a erecção enorme, escaldante. Um arrepio percorreu-a, sabendo-se à beira da perda, da queda.
Encolheu-se.
Desceu a perna e, sem dar explicação alguma, levantou-se. Deixando-o a vê-la afastar-se tão lentamente que dir-se-ia quase sonolenta, podendo parar a cada instante.
Cair.
Pedro ficou à espera que ela resvalasse, tombasse como um pássaro atingido por um tiro. Lembrou-se, então, dos anjos de que a ouvira falar, como se fossem da sua companhia, e surpreendeu-se com isso. Afinal, Mónica nunca parecia levantar voo e sim cair. Como naquele momento, antes de dobrar a esquina, andar inseguro, resvalante, em desequilíbrio.


(Alguns fins de tarde, sozinha em casa, Mónica ouvia Purcell: vozes subindo pelas arcadas do sonho, roçando na pedra das catedrais, ressoando pelas escadarias, no claustro do convento, onde Santa Cecília se unia, num transporte, ao êxtase fantasiado. Mas acabava por voltar sempre e sempre a Mahler, buscando o cume da sua fulgurante sombra, da sua penumbrosa chama, como se bebesse de um poço profundíssimo, onde o desespero se deixava tocar pelo som harmonioso que se oferecia, relutante. Pelo olhar pleno de lucidez, contendo todas as suspeitas. Todos os equívocos.)
IV
Procurou Pedro à porta do hospital onde sabia que ele trabalhava. E isso fê-la recordar as batas brancas, o microscópio, o sangue, as pequenas lamelas rectangulares, e os frascos de boca larga com rolha de cortiça que chegara a encontrar no frigorífico, frascos onde pedaços de órgãos de pessoas nadavam em formol, à espera que a madrasta os dissecasse, os analisasse. Memória antiga que a nauseou, mas evitando o súbito vómito que se formara na garganta endurecida, a revolver-lhe o estômago.
Afastou-se, espavorida, daquele sítio que recordava, revendo-se criança com tanta precisão que se admirou. Sentia medo só com a ideia de encontrar o pai ou até algum dos seus assistentes, das suas preparadoras de que ainda sabia o nome. - «Na realidade não quero esquecer nada, nem ninguém!» -, pensou. E forçou-se a regressar, ficando à espera que Pedro saísse à hora que lhe havia dito: a bata branca enrolada debaixo do braço, a maleta escura e pesada pendendo da mão direita.
Chamou-o e viu-o fitá-la, furtivo, desagrado de a encontrar ali. Certa de que se dependesse dele a arrancava da sua vida, querendo-a no entanto perto. Desejo ambíguo mas evidente na pressa com que a empurrou para dentro do carro, dizendo: - «Vamos!» Voz afogada de ansiedade ao perguntar: «Hoje podes?» Mónica podia sempre, estava sempre disponível para o desejo de ambos, mas respondeu tocando-lhe ao de leve no ombro ossudo que lhe apetecia beijar, descendo a língua até ao lóbulo da orelha, bebendo-lhe o cheiro a suor, aí intenso. E enquanto se encaminhavam para a pensão, mexeu-lhe ao acaso, somente com a ponta dos dedos, demorando-se-lhe nos joelhos, ao longo das costas, na barriga côncava. Na brandura morna da nuca.
Uma das coisas que mais a excitava em Pedro era ser todo liso, escuro e macio, sem um pêlo; apenas o púbis denso formava uma espécie de bosque a entranhar-se, a perder-se fértil e negro entre as coxas alongadas. Gostava de esfregar nele os lábios, molhando-o com saliva, enquanto se debruçava mansamente ouvindo-o gritar baixo, rouco, de olhos fechados, as pestanas compridas e densas a acentuarem as suas fundas olheiras cetinadas.


(Quando ouvia Mahler, revia a indiferença, o afastamento, um soberano desamor a saber a vazio, um total deserto, com um acidulado travo a goivo. Quando ouvia Mahler, encolhida no isolamento de uma sala, na última cadeira da última fila, sem nunca olhar a orquestra, era o que a atingia: o abandono. Esse hábito, esse vício do nada absoluto, a esconder a plenitude.)
V
Mordeu-o no pescoço a primeira vez que o teve, que o possuiu, como uma vampira delicada e viciosa. Adorou ouvi-lo gemer quando o sangue dele se misturou à sua saliva e o engoliu, com uma sede de rubi.
Uma noite olhou para o espelho onde os corpos de ambos se misturavam, como se não lhes pertencessem e deparou com as asas abertas nas suas próprias costas: penas trasnlúcidas, de um tom nacarado de pérola; asas subidas sobre os ombros, com um ligeiríssimo brilho, semeadas de secretos diamantes, meio encobertos por uma penugem discreta e dourada. Não parou de se mover em cima dele, quase voando no orgasmo veloz que se construía solto, no centro obscuro do gozo, rasgando resistências, iludindo medos, recusas de fusionamentos destruidores.
Aniquilamento último.
Depois tombou exausta, como se desmaiasse, cega e sem ouvir, olhos de azul-cobalto, abertos no incêndio que apenas ela distinguia. Assustado, Pedro conseguiu segurá-la antes de Mónica resvalar para o chão, mas de imediato sentiu-lhe de novo os lábios insistentes, a procurá-lo, amordaçando-lhe as perguntas, calando-lhe as dúvidas, derrotando as suspeitas inquietantes.
Fora assim desde o primeiro dia: o total atropelamento das emoções e dos sentidos, o esquecimento dos sentimentos, mas igualmente o fim do terrível fantasma da impotência que até a conhecer tanto o humilhava. - «Vem!», ouviu-a pedir. - «Vem outra vez!» E mais outra e outra vez, numa voragem raivosa.
Os lençóis enrodilhados ficavam no chão quando saíam para o corredor sujo e escuro, a cheirar a gordura fria, entranhada, de cozinha mal lavada. Mas os dois sentiam somente o odor a orgasmo que levavam na pele, enquanto a contragosto desciam as escadas, tropeçando na boca um do outro.

 
Maria Teresa Horta
Saber mais»

Livros relacionados

Wook está a dar

Subscreva!