Que Deus te Abandone
de André Diniz; Ilustração: Tainan Rocha
Sobre
o LivroDecorrendo apenas numa noite, ou em parte dela, a acção deste livro começa muito antes de o abrirmos e continuará para lá de o fecharmos. É uma história simples, sobre escolhas e o valor da vida humana.
De visita ao seu noivo Quirino, Bárbara é apanhada por uma tempestade, que se abate sobre a favela e faz desmoronar uma parte, arrastando casas e moradores, deixando um rasto de destruição e morte e muitos feridos e soterrados a necessitar de ajuda. Entre eles está Donato, cuja fama de violador, pedófilo e assassino afasta qualquer boa intenção de possíveis salvadores. Desafiando tudo e todos, lutando contra si mesma e os sentimentos contraditórios com que se debate, Bárbara decide que Donato é apenas (mais) um ser humano.
A luta contra o tempo, os elementos e a desaprovação generalizada, vai gerar surpresas e ter consequências que o leitor descobrirá ao longo de um relato que, na sua humanidade, se revela bem mais extenso e profundo do que as páginas que o contém.
Quando uma tempestade se abate sobre a cidade de Petrópolis, resta à jovem Bárbara fazer escolhas que irão afetar toda uma comunidade. Em Novembro de 2015, uma barragem (no interior de Minas Gerais) rompeu-se e a água inundou a cidade de Mariana. Milhares de histórias se desfizeram sob a lama, levando vidas e sonhos. Não é a primeira e não será a última vez que o Brasil se depara com um drama assim, movido pelo caos do homem e pela natureza, forças que colidem quase sempre em campos opostos. É precisamente sobre isso que esta banda desenhada incide: a capacidade que temos de resistir, mesmo no meio das piores adversidades. Focada em poucos personagens que habitam a periferia de Petrópolis, (mas poderia ser Salvador, São Paulo, Mumbai, etc.), a trama mostra a reação dos moradores de uma favela diante da chuva devastadora, cujas sequelas carregarão para sempre. Com um argumento direto, André Diniz conta a história de Bárbara: jovem que, para escapar da tormenta, decide ficar com o namorado Quirino, sem adivinhar o que a esperava. A água provoca o desabamento das casas no local, e Bárbara acaba por entrar em conflito com os moradores da comunidade, ao optar por seguir a sua consciência. A arte de Tainan Rocha corre expressiva e verdadeira, evocando com suas tramas e tons escuros o ambiente frágil em que vivem aquelas pessoas, habitando barracões de madeira e zinco, construídos sobre fundações frágeis. É impossível não nos emocionarmos com algumas cenas, que - em alguns momentos - nos remetem para o clássico de Picasso "Guernica": seja no desespero das expressões dos personagens - também tomados pela revolta - seja na fragilidade diante de forças maiores que não podem conter, sem atenuar por um instante a realidade dura em que estão imersos. Mais uma vez, o selo da Polvo mostra ao que veio, propondo enredos para além dos caminhos comuns, capazes de tocar leitores habituais e também aqueles que ainda não têm familiaridade com o mundo da Nona Arte, com preços acessíveis e acabamento de qualidade nas edições. "Que Deus Te Abandone" é um desses bons momentos em que as histórias em banda desenhada (como expressão artística) também se tornam jornalismo, denunciando os dramas quotidianos em que estamos - literalmente - submersos, e paradoxalmente, insensíveis. Porque o mundo não é preto e branco como se pensa ou se é levado a pensar – o mundo é sépia e uma vasta paleta de cinzentos (bem mais de cinquenta sombras!), como as cores de Tainan Rocha.