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Intelectuais à Brasileira

de Sergio Miceli

idioma: português do brasil, português
editor: Diversos, abril de 2001

Nesta reunião de livros e artigos, Sergio Miceli examina o Brasil e suas elites intelectuais de um ângulo original, através de uma narrativa extremamente expressiva. Munido de um fértil instrumental sociológico, disseca a trama de relações pessoais e políticas que sustenta as estratégias de actuação de sectores das camadas dirigentes do país.
O alvo da análise são os pré-modernistas e modernistas - cronistas, poetas, romancistas profissionais e literatos de diferentes cepas que actuaram na República Velha e no período Vargas - Lima Barreto, Manuel Bandeira e Mário de Andrade, entre vários outros. O intérprete propõe uma sociologia da vida intelectual brasileira sensível às imbricações das biografias com a dinâmica político-cultural e mostra como as experiências mais íntimas e pessoais reverberam na obra produzida. Examina ainda duas experiências institucionais decisivas: o Conselho Nacional de Educação e o Serviço de Património Histórico e Artístico Nacional.
Miceli também expõe os bastidores da interpretação, compartilhando com os leitores o embate do pesquisador com os seus materiais e a emoção da descoberta, que compõem, como ele diz, o "transe do processo de investigação".

A CONSTRUÇÃO DO TRABALHO INTELECTUAL

Tentarei reconstruir, com um pouco de método, uma boa dose de lembrança e alguma emoção, minha experiência do trabalho intelectual. Embora possa reconhecer na primeira fase diversos elementos formadores da trajetória, tenho a impressão de que não havia ainda se sedimentado uma vivência por inteiro do que seja o trabalho intelectual propriamente dito em sociologia.
Na dissertação de mestrado, publicada no início da década de 1970, a análise do processo de fabricação da cultura na televisão se voltava para as mensagens a serem decifradas em suas dimensões visual e social, a primeira delas impulsionando uma recuperação mais densa e matizada dos significados sociais. Apesar da boa receptividade ao trabalho na imprensa e entre os colegas, ficara insatisfeito com o argumento um tanto singelo com que busquei organizar as evidências coligidas. Fui me dando conta de que a leitura sociológica do material extraído das gravações se apoiava quase o tempo todo em informações externas à mensagem mesma que era o objeto central de estudo. Enquanto isso, buscava recuperar os significados embutidos no discurso televisivo, seguindo assim, literalmente, o receituário prescrito pelos defensores da análise semiológica e demais famílias de pensamento fascinadas pela lógica interna dos discursos. A despeito das limitações inerentes a esse tipo de abordagem, as maiores dificuldades eram minhas, consistindo, primeiro, numa tosca elaboração da dimensão iconográfica e, segundo, numa incipiente competência para lidar com recursos de uma análise estrutural e comparativa. Por força de tudo isso, estava dessa feita muito mais propenso a me bandear para o outro lado do processo de produção de cultura, ou seja, a tomar como objeto de investigação uma categoria social que fosse também produtora profissional de bens simbólicos.
E assim foi tomando corpo a pesquisa acerca dos intelectuais nas décadas de 1920, 30 e 40. De início, eu sabia muito mais o que não queria fazer, ou melhor, identificava as linhas de argumentação que me pareciam esquemáticas. Para tomar apenas um exemplo que acabou tendo certo impacto na montagem da explicação, estava (e continuo hoje) convencido de que a cobertura apologética algo orquestrada do movimento modernista, em especial a canonização das principais lideranças, escamoteava o perfil social de seus integrantes e, em conseqüência, se mostrava incapaz de captar as marcas dessa experiência no conteúdo de suas obras. Queria portanto me livrar dos esquemas implícitos nas diversas correntes da história e da crítica literárias. Em meio a essa atitude de recusa à adoção das versões eruditas e "humanistas" disponíveis acerca da vida intelectual brasileira do período, acabei enveredando por caminhos de prospecção que não havia de início identificado. Passei a acreditar que a exploração de veios inéditos de material traria subsídios instigantes a respeito dos intelectuais. Tratava-se de uma expectativa um tanto no atacado, sem que eu tivesse maior precisão quanto a como monitorar as pepitas e os pepinos porventura dispersos no material a ser investigado. Com tais disposições acabei definindo duas trilhas de garimpo cujos cruzamentos me pareciam àquela altura bastante problemáticos: o levantamento exaustivo da inserção dos intelectuais no setor público federal no período 1930-45 e a leitura das memórias e biografias dos intelectuais.
Na medida em que rechaçava as perspectivas macrossociais encampadas pelos modelos dominantes da historiografia e do ensaísmo literários, esse trabalhoso levantamento das nomeações me pareceu então ostentar os emblemas de um lastro empírico irrecusável, sobre o qual se poderia apoiar uma análise do relacionamento que os diferentes setores e categorias intelectuais passaram a manter com seus mentores políticos. Os resultados iniciais nessa direção foram bastante desanimadores. A canseira requerida pela apuração das nomeações para cargos públicos por meio do Diário Oficial da União não dava mostras de conduzir a lugar algum, todo esse esforço não encontrando de imediato uma contrapartida analítica satisfatória. A uma dada altura, entretanto, que correspondia aos meados da década de 1930, começou a adquirir uma feição característica o processo de constituição de redes de proteção e amizade, freqüentemente amalgamadas por jovens lideranças emergentes, tornando possível rastrear em bases sistemáticas os setores de trabalho e intervenção que então se abriam aos novos quadros daquela geração de intelectuais.
[...] À medida que avançava na absorção das informações contidas nesses gêneros, fui me dando conta de que o perfil familiar, afetivo, educacional e profissional dos intelectuais do período, que aos poucos ia ganhando contornos surpreendentes com base nessas leituras, era muitíssimo distinto do retrato encontradiço nas fontes tradicionais. A rigor não havia nenhuma inverdade nessas fontes, apenas silenciavam ou nem mesmo consideravam merecedoras de tratamento algumas informações cruciais em suas histórias de vida, como, por exemplo, o fato de muitos deles serem órfãos de pai, de outros tantos apresentarem um elenco diversificado de estigmas de toda ordem (físicos, emocionais etc.) ou, então, de terem um convívio tão íntimo e contagiante com o mundo das mulheres da elite ou a seu serviço. Esses e outros traços da experiência de vida dos intelectuais sob exame foram aos poucos dando rosto a uma versão ainda "selvagem" do que mais tarde seria o argumento central da tese a respeito dos laços que esses intelectuais mantinham com transes característicos das famílias em declínio da elite brasileira.
Na época, eu estava empolgado pelo desvendamento de inúmeros traços sociais que foram compondo um retrato até então desconhecido desses intelectuais. Esse material empírico fervilhante iria em seguida suscitar o desafio de lhe infundir um sentido interpretativo mais abrangente, em condições de discriminar padrões dotados de um maior poder de generalização, em torno dos quais se pudesse enganchar a riquíssima variedade de eventos detectados.
Após alguns meses de estada em Paris, meu orientador sugeriu que eu preparasse um roteiro exploratório com vistas a organizar os materiais coligidos segundo uma certa linha de argumentação. Fiquei excitado com a perspectiva de obter alguma reação ao que reputava "minhas descobertas" analíticas e, ao mesmo tempo, receoso pelo fato de que a maioria desses enlaces não tivesse sido até então utilizada em trabalhos de outros pesquisadores do grupo mais ligado ao mestre. Achava que tinha o ouro mas temia que fosse considerado uma espécie de contrabando. Transmiti minha preocupação aos assistentes, que nem se mostraram entusiásticos nem me desencorajaram de todo. Resolvi bancar o lance e exibir aquele lado menos "nobre" do material levantado.
A reação do "patrão" foi a melhor possível, quase de entusiasmo na escala dos costumes locais. Prossegui na mesma batida, às voltas com a leitura das memórias e biografias, buscando completar as lacunas de informação com os dados disponíveis em repertórios biobibliográficos, em dicionários especializados, em histórias literárias e políticas regionais e estaduais, construindo dessa maneira um teste das minhas hipóteses, tendo como grupo de controle uma quantidade maior de intelectuais do que o contingente de autores de memórias e de biografados. A proposta para que eu redigisse um artigo exploratório (que seria publicado na revista que então se iniciava, Actes de la Recherche en Sciences Sociales) forçou como que um teste completo do argumento que estava se armando, dessa vez tendo como objeto de análise um conjunto de escritores pré-modernistas designados no texto como anatolianos, em função das influências sofridas do modelo francês.
A redação desse artigo permitiu ensaiar algumas aproximações comparativas que mais tarde se revelaram fecundas para a maturação da visada sociológica sobre as elites brasileiras. O trabalho a respeito dos pré-modernistas propiciou o ensejo de pôr à prova a justeza do modelo de explicação que então se esboçava, no interior do qual constrições sociofamiliares se juntavam a experiências decisivas de intimidade com o universo feminino dos grupos dirigentes e a oportunidades subvencionadas de treinamento e socialização nas profissões intelectuais, num quadro de fundo marcado pelas instituições e demais condicionantes característicos de um mercado de bens culturais numa sociedade periférica. Esse misto de experimento-artigo teve também alguns inesperados desdobramentos de longo prazo.

A CONSTRUÇÃO DO TRABALHO INTELECTUAL

Tentarei reconstruir, com um pouco de método, uma boa dose de lembrança e alguma emoção, minha experiência do trabalho intelectual. Embora possa reconhecer na primeira fase diversos elementos formadores da trajetória, tenho a impressão de que não havia ainda se sedimentado uma vivência por inteiro do que seja o trabalho intelectual propriamente dito em sociologia.
Na dissertação de mestrado, publicada no início da década de 1970, a análise do processo de fabricação da cultura na televisão se voltava para as mensagens a serem decifradas em suas dimensões visual e social, a primeira delas impulsionando uma recuperação mais densa e matizada dos significados sociais. Apesar da boa receptividade ao trabalho na imprensa e entre os colegas, ficara insatisfeito com o argumento um tanto singelo com que busquei organizar as evidências coligidas. Fui me dando conta de que a leitura sociológica do material extraído das gravações se apoiava quase o tempo todo em informações externas à mensagem mesma que era o objeto central de estudo. Enquanto isso, buscava recuperar os significados embutidos no discurso televisivo, seguindo assim, literalmente, o receituário prescrito pelos defensores da análise semiológica e demais famílias de pensamento fascinadas pela lógica interna dos discursos. A despeito das limitações inerentes a esse tipo de abordagem, as maiores dificuldades eram minhas, consistindo, primeiro, numa tosca elaboração da dimensão iconográfica e, segundo, numa incipiente competência para lidar com recursos de uma análise estrutural e comparativa. Por força de tudo isso, estava dessa feita muito mais propenso a me bandear para o outro lado do processo de produção de cultura, ou seja, a tomar como objeto de investigação uma categoria social que fosse também produtora profissional de bens simbólicos.
E assim foi tomando corpo a pesquisa acerca dos intelectuais nas décadas de 1920, 30 e 40. De início, eu sabia muito mais o que não queria fazer, ou melhor, identificava as linhas de argumentação que me pareciam esquemáticas. Para tomar apenas um exemplo que acabou tendo certo impacto na montagem da explicação, estava (e continuo hoje) convencido de que a cobertura apologética algo orquestrada do movimento modernista, em especial a canonização das principais lideranças, escamoteava o perfil social de seus integrantes e, em conseqüência, se mostrava incapaz de captar as marcas dessa experiência no conteúdo de suas obras. Queria portanto me livrar dos esquemas implícitos nas diversas correntes da história e da crítica literárias. Em meio a essa atitude de recusa à adoção das versões eruditas e "humanistas" disponíveis acerca da vida intelectual brasileira do período, acabei enveredando por caminhos de prospecção que não havia de início identificado. Passei a acreditar que a exploração de veios inéditos de material traria subsídios instigantes a respeito dos intelectuais. Tratava-se de uma expectativa um tanto no atacado, sem que eu tivesse maior precisão quanto a como monitorar as pepitas e os pepinos porventura dispersos no material a ser investigado. Com tais disposições acabei definindo duas trilhas de garimpo cujos cruzamentos me pareciam àquela altura bastante problemáticos: o levantamento exaustivo da inserção dos intelectuais no setor público federal no período 1930-45 e a leitura das memórias e biografias dos intelectuais.
Na medida em que rechaçava as perspectivas macrossociais encampadas pelos modelos dominantes da historiografia e do ensaísmo literários, esse trabalhoso levantamento das nomeações me pareceu então ostentar os emblemas de um lastro empírico irrecusável, sobre o qual se poderia apoiar uma análise do relacionamento que os diferentes setores e categorias intelectuais passaram a manter com seus mentores políticos. Os resultados iniciais nessa direção foram bastante desanimadores. A canseira requerida pela apuração das nomeações para cargos públicos por meio do Diário Oficial da União não dava mostras de conduzir a lugar algum, todo esse esforço não encontrando de imediato uma contrapartida analítica satisfatória. A uma dada altura, entretanto, que correspondia aos meados da década de 1930, começou a adquirir uma feição característica o processo de constituição de redes de proteção e amizade, freqüentemente amalgamadas por jovens lideranças emergentes, tornando possível rastrear em bases sistemáticas os setores de trabalho e intervenção que então se abriam aos novos quadros daquela geração de intelectuais.
[...] À medida que avançava na absorção das informações contidas nesses gêneros, fui me dando conta de que o perfil familiar, afetivo, educacional e profissional dos intelectuais do período, que aos poucos ia ganhando contornos surpreendentes com base nessas leituras, era muitíssimo distinto do retrato encontradiço nas fontes tradicionais. A rigor não havia nenhuma inverdade nessas fontes, apenas silenciavam ou nem mesmo consideravam merecedoras de tratamento algumas informações cruciais em suas histórias de vida, como, por exemplo, o fato de muitos deles serem órfãos de pai, de outros tantos apresentarem um elenco diversificado de estigmas de toda ordem (físicos, emocionais etc.) ou, então, de terem um convívio tão íntimo e contagiante com o mundo das mulheres da elite ou a seu serviço. Esses e outros traços da experiência de vida dos intelectuais sob exame foram aos poucos dando rosto a uma versão ainda "selvagem" do que mais tarde seria o argumento central da tese a respeito dos laços que esses intelectuais mantinham com transes característicos das famílias em declínio da elite brasileira.
Na época, eu estava empolgado pelo desvendamento de inúmeros traços sociais que foram compondo um retrato até então desconhecido desses intelectuais. Esse material empírico fervilhante iria em seguida suscitar o desafio de lhe infundir um sentido interpretativo mais abrangente, em condições de discriminar padrões dotados de um maior poder de generalização, em torno dos quais se pudesse enganchar a riquíssima variedade de eventos detectados.
Após alguns meses de estada em Paris, meu orientador sugeriu que eu preparasse um roteiro exploratório com vistas a organizar os materiais coligidos segundo uma certa linha de argumentação. Fiquei excitado com a perspectiva de obter alguma reação ao que reputava "minhas descobertas" analíticas e, ao mesmo tempo, receoso pelo fato de que a maioria desses enlaces não tivesse sido até então utilizada em trabalhos de outros pesquisadores do grupo mais ligado ao mestre. Achava que tinha o ouro mas temia que fosse considerado uma espécie de contrabando. Transmiti minha preocupação aos assistentes, que nem se mostraram entusiásticos nem me desencorajaram de todo. Resolvi bancar o lance e exibir aquele lado menos "nobre" do material levantado.
A reação do "patrão" foi a melhor possível, quase de entusiasmo na escala dos costumes locais. Prossegui na mesma batida, às voltas com a leitura das memórias e biografias, buscando completar as lacunas de informação com os dados disponíveis em repertórios biobibliográficos, em dicionários especializados, em histórias literárias e políticas regionais e estaduais, construindo dessa maneira um teste das minhas hipóteses, tendo como grupo de controle uma quantidade maior de intelectuais do que o contingente de autores de memórias e de biografados. A proposta para que eu redigisse um artigo exploratório (que seria publicado na revista que então se iniciava, Actes de la Recherche en Sciences Sociales) forçou como que um teste completo do argumento que estava se armando, dessa vez tendo como objeto de análise um conjunto de escritores pré-modernistas designados no texto como anatolianos, em função das influências sofridas do modelo francês.
A redação desse artigo permitiu ensaiar algumas aproximações comparativas que mais tarde se revelaram fecundas para a maturação da visada sociológica sobre as elites brasileiras. O trabalho a respeito dos pré-modernistas propiciou o ensejo de pôr à prova a justeza do modelo de explicação que então se esboçava, no interior do qual constrições sociofamiliares se juntavam a experiências decisivas de intimidade com o universo feminino dos grupos dirigentes e a oportunidades subvencionadas de treinamento e socialização nas profissões intelectuais, num quadro de fundo marcado pelas instituições e demais condicionantes característicos de um mercado de bens culturais numa sociedade periférica. Esse misto de experimento-artigo teve também alguns inesperados desdobramentos de longo prazo.

Intelectuais à Brasileira

de Sergio Miceli

Propriedade Descrição
ISBN: 9788535901139
Editor: Diversos
Data de Lançamento: abril de 2001
Idioma: Português do Brasil, Português
Dimensões: 160 x 229 x 28 mm
Páginas: 440
Tipo de produto: Livro
Classificação temática: Livros em Português > Ciências Sociais e Humanas > Sociologia
EAN: 9788535901139
Idade Mínima Recomendada: Não aplicável
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