Hans - O Cavalo Inteligente
de Miguel Rocha
Sobre
o LivroEste livro nasce de uma complicada genealogia diegética. Muitos de nós já ouvimos histórias de cavalos que sabiam contar ou dizer as capitais da Europa com golpes dos cascos no chão. Ora, esse caso é real, e remonta ao início do século XX, mais especificamente a "der kluge Hans", o cavalo do frenologista W. von Osten, apresentado numa Mitteleuropa de um tempo dividido entre o positivismo e misticismos vários, entre o progresso moral-social e o mais chão tradicionalismo, entre novas linguagens estéticas revolucionárias e os mais comezinhos dos princípios burgueses endomigados. Veja-se a versão cinematográfica de Woyzeck, de W. Herzog, para encontrarmos esse cavalo a servir de metonímia às experiências do médico sobre o próprio protagonista. O cavalo, aos poucos, deixa de ser uma personagem de interesse próprio, para se revestir com a pele de um símbolo... um símbolo daquelas divisões, daqueles intervalos, daqueles espaços em negociação a que acabámos de aludir.
"Hans - O Cavalo Inteligente" é, na minha opinião, a obra mais completa de Miguel Rocha, e sem dúvida a mais madura. A narração fruto da premissa peculiar da obra - explicada na sinopse - é complementada com sucesso pela técnica escovada dos pretos e brancos do autor, agora definitivamente apropriada e dominada sem restrições. Mais do que o ambiente melancólico transversal presente na maioria dos seus trabalhos, está aqui presente porventura mais uma espécie de decadência, na qual as tonalidades suavemente escovadas transportam o leitor por entre a narrativa. A "luz" portuguesa que Miguel Rocha tão bem captura é aqui convertida com sucesso para uma palidez centro-europeia, posta em contacto com o uso do padrão como instrumento de desenho e comunicação que conferem uma elegância e sofisticação invulgares a uma obra de banda desenhada. É reconfortante e altamente emocionante percorrer o percurso evolutivo de Miguel Rocha e a sua constante procura em adquirir novas ferramentas, novos meios expressivos, que confirmam o seu compromisso para com a banda desenhada como arte. Miguel Rocha claramente absorve e alimenta-se dos conteúdos dos colegas que admira, e ainda bem. Arrisco afirmar, a título de exemplo, que uma pequena secção no final do livro contendo anúncios em modo de jornal, são claramente reminiscentes dos trabalhos de Chris Ware. Tudo isto vinca assim a consciência do privilégio que o panorama nacional tem ao poder dispor de alguém tão talentoso como Miguel Rocha. Fica o apelo a uma urgente reedição, e maior divulgação da obra de Miguel Rocha. Sublinho, urgentes. Altamente recomendado.