À Volta de Padre Baptista Livro
de Henrique Manuel Pereira
Sobre
o Livro«Calvário» é palavra comum na nossa linguagem e em muitos lugares.
Uma vida difícil é um «calvário» e até determinados sítios se
chamam assim. Como «Cruz», que desde traço especifico a apelido
de família, também, aparece.
Mas nem sempre foi assim. Na antiga Roma dava nome a um terrível
suplício. Tão terrível que as primeiras gerações cristãs demoraram
um tanto a adoptá-la como sinal.
Mas era inevitável que o fizessem, por significar, com todo o realismo,
o ponto final da vida terrena do Fundador do Cristianismo, ponto inicial
da vida da Igreja que vive da Cruz do seu Senhor. Logo o descobriu
São Paulo, encontrando aí mesmo a sua glória, na Cruz em que
Cristo inteiramente se entregara, fazendo do suplício uma dádiva.
Cruz levantada no Calvário, podendo agora toda a terra ser também
Calvário, transfigurado pela Cruz: de lugar de sofrimento, tornar-se
em fonte de caridade e de paz.
Aqui, as palavras comuns passam a comunicar o absoluto. O absoluto
do amor de Deus feito um de nós, para nos resgatar duma vida
sem Deus. Na verdade, só o amor de Cristo nos redime, qual Cruz
luminosa, no Calvário transformado em Éden do homem novo.
- Encontrámo-lo em Beire? Há várias décadas que muita gente o
confirma. E em todo esse tempo o referem a um nome que também
se tornou comum: Padre Baptista.
Conheci-o nos anos oitenta, das suas idas ao Seminário dos Olivais.
Passavam por lá muitas pessoas e todas tinham coisas para contar,
da vida da Igreja e do mundo, da Igreja no mundo. Mas o Padre
Baptista não era assim tão comum; nem sequer falava da vida, era
mais a vida que falava. A sua vida e a vida de tantos que fizera sua
também.
Vida e convivência, portanto. Porque o dia-a-dia que nos relatava
consistia na atenção constante e mútua que idosos e enfermos
prestavam uns aos outros, onde o companheirismo tomava o lugar
do assistencialismo. Não teorizava, contava apenas. Como a história
do doente quase terminal que acabou por durar anos, só porque
lhe deram a oportunidade de jardinar. Como a outra, em que dois
homens com grandes limitações físicas punham a mesa comum,
complementando os gestos necessários que nenhum poderia fazer
sozinho…
Mas, por dentro destas histórias, está a densidade que as palavras
comuns e as coisas comezinhas só alcançam quando as anima um
coração como o de há dois mil anos no Calvário essencial.
Obrigado, Padre Baptista!
D. Manuel Clemente [Cardeal Patriarca]
Chegou a hora de dar notícia de uma Obra que há muito trazemos no peito, a saber: um abrigo onde possam morrer cristãmente legiões de inválidos sem morada certa. Vai-se-lhe dar o nome de Calvário. O Calvário! É um nome tirado do Evangelho. É o resumo de toda a economia da Redenção. Fazem hoje falta no mundo estes nomes, estas ideias, estas Obras humanas de sabor divino. Um lugar onde cada padecente leve, sim, mas não arraste a sua cruz dolorosa. Na verdade, todos compreendemos que se ele é difícil ao incurável não ter onde viva, quanto mais desesperado não ter sitio onde morrer?! Temos obrigação de meditar nestas coisas e reagir contra o estado delas.
Não podemos airosamente alegar ignorância, porquanto os diários costumam dar a notícia do homem e da mulher que, agora e logo, aparecem mortos nos palheiros. Maior é a nossa culpa. Parece que esta feição de vida social tem escapado aos organizadores de hospitais. Não sei se em qualquer deles haja sido instalado o serviço permanente no caso dos incuráveis. O hospital tem a função de curar. Os leitos são para eles. O incurável não pode entrar; e se, entrando, prova um caso sem remédio, deve ir-se embora. Esta é a doutrina pública. E nós agora podemos perguntar: Ir para onde? Para onde vai aquele desenganado, sem casa, sem família, sem amigos, sem nada? Eis aqui a pergunta crucial. Por si só, condena ela, ou pelo menos declara incompletos, os grandes hospitais onde se verifique a omissão.
O lugar escolhido para esta nova realização da Obra da Rua, é a quinta da Casa do Gaiato de Beire, a uns quinze quilómetros de Paço de Sousa. No sítio mais indicado elegemos dois hectares. O arquitecto riscou. Ao meio é a residência hospitalar, para casos que exijam maior e mais próxima assistência. Em redor ficam as residências. Sistema aldeamento.
Não há o criado. Não há verdadeiramente o enfermeiro. Procura-se tornar válido o inválido, para que esqueça e seja alegre. É uma obra de doentes, para doentes, pelos doentes. Temo-nos dado excelentemente com esta divisa nas Casas do Gaiato.
O mundo tende a colocar de parte aquilo que parece não prestar; um incurável é estorvo. O mundo engana e engana-se. Na hora em que a chamada ciência se retira, começa o poder de Deus. O Incurável é uma fortuna. Mais do que as Casas do Gaiato, mais do que o Património dos Pobres, esta edição da Obra da Rua vai ser a sua maior riqueza. Cada doente traz consigo uma fortuna, não digo a da garantia do seu sustento, que seria muito importante, mas ele traz mais do que isso. Eles são páginas em sangue de teologia. Se hoje milhares de portugueses e estrangeiros aparecem em nossas casas a ver o incrível, que será amanhã na quinta de Beire, onde Deus vai ser ainda mais glorificado?!
Mas ele existe também uma outra modalidade de assistência que o Calvário deseja e se propõe servir. São os convalescentes… O doente tem alta; não permanece. A razão é sempre a mesma. Tornamos a perguntar: Para onde vai? O Calvário espera-o. Será mesmo um ponto reconfortante para os que estiverem à frente. Podem verificar dia a dia um perfeito rejuvenescer. Observar a carne e o sangue. Ser testemunhas de vista de reintegrações na vida social; e meditar que, se não fora a Obra, aquele doente curado breve tornaria ao seu mal e viria até a morrer. Toda esta riqueza estava até agora escondida e vai aparecer na Obra que Deus inspirou. Muitos doentes hão-de ter ocasião de afirmar com verdade que, não fora a existência de Calvários e eles teriam morrido de penúria.
O êxito de uma Obra assim não se discute. Não há homem de bem que possa duvidar. Não tem bases para isso; só por ignorância. Primeiramente, temos a oração dos homens. Além da dor que consome incuráveis e convalescentes, existe outra ainda maior; é a dos que lhes não podem valer, a começar pelos próprios médicos e pessoal hospitalar. Além destes, temos os que escutam queixas dos arrastados. Os que lêem casos nos jornais. Os que não têm tempo para isso, mas ouvem falar. É o sentimento humano. O conhecimento de Deus, pelo conhecimento dos homens. Sim. Ninguém duvide do seu êxito. Tal como o Património dos Pobres, que parece não haver já em Portugal sítio de vago onde erguer mais casas, também agora o Calvário vai ser o caso do dia. Noutras vilas, noutras aldeias, noutras cidades. Abram-se Casas desta natureza para que os jornais não continuem a dar a triste noticia do abandonado que cai nos caminhos por não ter onde morrer.
Padre Américo
[Calvário, do Padre Baptista, 1.º volume, excerto do prefácio]