Política em Espinosa
de Marilena Chaui
São dois os principais alvos do pensamento político do filósofo Espinosa (1632-77). O primeiro é determinar o regime de governo mais favorável ao convívio dos homens - para o filósofo, é a democracia. O segundo, é o exame dos principais obstáculos a esse regime. Para Espinosa, os maiores impedimentos à vida democrática são a superstição e a divisão social. A superstição serve de álibi para regimes que buscam seu fundamento nas religiões, e a divisão da sociedade em classes leva a excluir partes dessa sociedade das decisões políticas.
Numa época em que o pensamento político afirmava que a estabilidade e a paz só podiam ser garantidas por um Estado forte como a monarquia absoluta, Espinosa demonstrou que a democracia é "o mais natural dos regimes políticos", pois é o único que satisfaz ao desejo inato de todo ser humano de governar e não ser governado.
Quando a religião se oferecia como sustentáculo ideológico do poder - segundo a crença de que os governantes representavam o poder de Deus e governavam por mandato divino -, Espinosa demonstrou que nada há de mais perigoso para a liberdade, a segurança e a paz da república do que a fundamentação teológica da política, isto é, o que chamamos hoje de fundamentalismo religioso.
Subversivas na sua época e na nossa, as ideias espinosanas propõem-nos tomar a prática política como invenção nascida do desejo e das paixões humanas.
À PROCURA DO DESTINATÁRIO
Ao findar o prefácio do Tratado teológico-político, Espinosa escreve:
Tais são, leitor filósofo, as idéias que ofereço ao teu exame, convencido da importância e da utilidade do assunto, tanto no que se refere ao trabalho como um todo quanto no que respeita a cada uma de suas partes, e por isso creio que não será mal acolhido por ti [...]. Aos demais, não recomendo a leitura desta obra, pois não tenho a menor razão para esperar que lhes agrade. Na verdade, sei como em seus espíritos os preconceitos são pertinazes e como aí estão enraizados depois de abraçados sob a capa da piedade. Sei que é impossível extirpar a superstição e o medo da alma do vulgar. Sei, enfim, que para ele a obstinação parece constância e que não é conduzido pela razão, mas arrebatado pelo ímpeto a louvar e a condenar. Não convido à leitura destas páginas o vulgar, nem todos aqueles que se deixam arrastar pelas mesmas paixões que ele. O que prefiro, aliás, é que negligenciem totalmente este livro, em vez de pervertê-lo, como sempre acontece cada vez que se põem a interpretar, prejudicando (e sem com isto tirarem qualquer proveito para si próprios) aqueles que poderiam filosofar mais livremente, se não considerassem que a razão deve estar a serviço da teologia. Para estes, acredito que meu livro será muito útil.
Texto enigmático. Espinosa nomeia o destinatário de seu discurso - o leitor filósofo - deixando-o, porém, atado nas amarras da não-filosofia, isto é, prisioneiro da submissão da razão à teologia, obstáculo maior para pensar livremente. Quem há de ser esse leitor que se distingue do vulgar? Quem é esse destinatário nomeado simultaneamente como filósofo e como não-filósofo? Talvez na contradição entre o desejo de pensar livremente e a submissão do pensamento aos dogmas teológicos venha a desenhar-se o contorno do leitor procurado pelo discurso.
Se, como afirma o Tratado da emenda do intelecto, pensar é uma subversão efetuada pelo desejo de vencer a dor mortal dos conflitos interiores, só a percepção da contradição tem poder para suscitar o rompimento que inaugura o pensar e o agir, isto é, a filosofia. E o rompimento designa a contrapelo aquilo que impede o exercício de um pensar livre e que bloqueia a ação: a servidão aos bens incertos da fortuna que, ao fim e ao cabo, se mostram males certos. Em outras palavras, aquilo que o Teológico-político designa com o nome de superstição e cuja causa se encontra na confluência entre o desejo imoderado de bens, o temor incessante de males e o sentimento da contingência de todas as coisas e de todos os acontecimentos. Se a escolha do destinatário é também a recusa daquele que será incapaz de ler, a figura do vulgar passa a fornecer um parâmetro para a circunscrição de um espaço definido pela impossibilidade de pensar e de agir: o vulgar não é aquele que acredita que a razão deva submeter-se à teologia, mas aquele que, sucumbindo à superstição, já está possuído pelo poderio dos teólogos sem nem mesmo se dar conta disso, pois seu saber é piedade cristalizada em preconceito. Assim, designando seu leitor e aquele que não saberá lê-lo, Espinosa designa o obstáculo para o pensar e o agir livres: a obediência gerada pelo medo de males e pela esperança de bens, ambos igualmente incertos, que levam a imaginar um poder transcendente e caprichoso que possui representantes humanos, conhecedores de sua vontade secreta, e aos quais é preciso submeter-se.
A teologia é a teoria imaginária da contingência. Centrada na imagem de uma vontade onipotente e transcendente que cria e governa o mundo, a imaginação teológica propõe explicações que conservem o medo e a esperança, pois deixam cada um dos humanos suspensos aos desígnios imprevisíveis de um poder altíssimo; e propõe códigos de conduta em que a vontade humana se submete à divina pela mediação daquele que afirma saber interpretá-la, isto é, o teólogo.
Eis por que o Teológico-político declara taxativamente que a verdade, e única verdade, da teologia é ensinar a obediência, pois seu ponto de partida é a distinção entre a razão ou luz natural e a revelação ou luz sobrenatural, distinção que, na realidade, afirma a inferioridade da primeira e a superioridade da segunda, exigindo que aquela se submeta a esta. Pondo-se como intérprete autorizado das revelações divinas, o teólogo pretende com elas estancar a razão e dominá-la. Assim, o que separa teologia e filosofia não é uma repartição sensata de competências, cada qual ficando de posse de verdades que se excluem sem se negar, de sorte que ambas pudessem ser consideradas regiões diferentes do saber. Filosofia e teologia não se distinguem pelo conteúdo de suas verdades e sim pela atitude diversa que exigem daquele que deseja pensar: a teologia exige obediência e submissão intelectual; a filosofia é exercício livre do pensamento.
Mas, se a teologia exige uma razão obediente e submissa, se transforma o sentimento religioso em submissão a preceitos e dogmas incompreensíveis, nada impede que aquele que deseja obedecer possa também desejar compreender o sentido de sua obediência. É nesse momento da compreensão do significado de um saber obediente que a contradição vem à tona. O desejo de conhecer pode, em um primeiro passo, fazer uma tentativa para que a consolação trazida pela teologia se converta em certeza "matematicamente demonstrada", o que é impossível. Com efeito, aqueles para quem a filosofia e a teologia se contradizem mutuamente, concluindo que uma ou outra deve ser expulsa e que é preciso justificar essa expulsão, não erram quando querem dar à teologia fundamentos sólidos e quando se esforçam para demonstrá-la matematicamente. Evidentemente, ninguém é insensato a ponto de querer expulsar a razão e suas certezas. Entretanto, não podemos justificar essa tentativa, pois que a razão é chamada em socorro da teologia para depois ser expulsa, procurando-se uma razão certa para torná-la incerta.
Se a razão é invocada para assegurar as certezas teológicas, estas ficam sob o domínio daquela e, nesse caso, a teologia tira sua clareza da pura luz da razão, e não mais dos mistérios da revelação, que são sua fonte e garantia. Se, ao contrário, a razão é invocada apenas para auxiliar a teologia na tarefa de persuadir os infiéis, não merece a menor confiança, pois, ou o Espírito Santo se deixa reconhecer por suas próprias obras, ou não há como convencer um infiel de que aquilo que vê e sente seja obra do Santo Espírito e não da razão. A menos que seja para satisfazer um insaciável desejo de poder, nada explica a tentativa da teologia para usar a razão. Esse uso não é, pois, determinado por uma necessidade interna à teologia como saber, mas apenas como aspirante à dominação. Usando e manipulando a razão, a teologia só é capaz de instrumentalizá-la e de mantê-la na periferia dos dogmas. Assim fazendo, a atitude teológica nega a razão como autodeterminação das idéias verdadeiras e confere-lhe uma posição subalterna e de exterioridade diante de verdades que se instituem antes e fora dela.
De onde vem a diferença que torna impossível dar sentido a um saber obediente que apenas desejaria conhecer as razões verdadeiras para obedecer? Em outras palavras, qual a diferença que interdita a instauração de uma teologia racional?
Antes, porém, de responder a essa questão é preciso responder a uma outra: de onde vem a elaboração de uma teologia racional?
Se retomarmos o sentimento da contingência ou da fortuna, que distribui e retira bens e males, veremos que a gênese da teologia racional encontra-se na necessidade de estabilizar a instabilidade supersticiosa, estabilidade que, sozinha, uma religião não parece conseguir.
Com efeito, lemos no prefácio do Teológico-político que, se os homens pudessem ter o domínio de todas as circunstâncias de suas vidas, não se sentiriam à mercê dos caprichos da fortuna, isto é, do acaso ou da sorte, não tomariam a ordem comum dos encontros fortuitos entre as coisas como se fosse a ordem necessária da realidade. Como, todavia, não possuem esse conhecimento e não possuem o domínio das circunstâncias de suas vidas, são habitados naturalmente por duas paixões, o medo e a esperança. Têm medo de que males lhes aconteçam e de que bens não lhes aconteçam, assim como têm esperança de que bens lhes aconteçam e de que males não lhes aconteçam. Como, além disso, desejam imoderadamente coisas que lhes parecem depender inteiramente da fortuna e desejam ter a posse exclusiva delas, afastando todos os outros e, enfim, como reconhecem que tais coisas são efêmeras, seu medo e sua esperança não acabam nunca, pois assim como coisas boas lhes vieram sem que soubessem como nem por quê, também podem desaparecer sem que saibam as razões desse desaparecimento; e assim como coisas más lhes vieram sem que soubessem como nem por quê, também podem desaparecer sem que saibam os motivos de sua desaparição. Para tentar compreender a origem da contingência dos bens e dos males imaginam, então, que coisas boas e más lhes acontecem por vontade de entes superiores e poderosos nos quais passam a crer e aos quais passam a adorar e a dirigir preces. Por medo e esperança, nascidos da impotência para dominar as circunstâncias de suas vidas, os homens se tornam supersticiosos e alimentam a superstição por meio da religião como crença em seres transcendentes ao mundo e que o governam segundo decretos humanamente incompreensíveis.
Ora, medos e esperanças são instáveis e fugazes, pois não temos sempre o mesmo medo e a mesma esperança das mesmas coisas. Sozinha, portanto, a religião não é capaz de dar constância e estabilidade à superstição da qual, no entanto, depende. Para isso precisa da teologia. Em outras palavras, a teologia racional nasce para dar a uma religião revelada um suporte mais firme do que a flutuação das paixões humanas, fixando as formas e os conteúdos incertos e fluidos das imagens e dos afetos, a fim de garantir-lhes e à religião uma constância e firmeza que não possuem. A teologia racional é a imposição da imagem da autoridade como fonte dessa constância e dessa firmeza.
Acompanhando mais de perto os textos espinosanos, notaremos que, para responder à primeira questão - por que é impossível uma teologia racional? -, precisamos perceber que a teologia abarca um campo mais amplo do que poderíamos supor à primeira vista.
Em sentido restrito, a teologia se reduz à atitude teórica que legitima a obediência a dois preceitos que, sendo divinos, são dogmas práticos irrecusáveis: o preceito da piedade (amar a Deus sobre todas as coisas) e o preceito da caridade e da justiça (amar ao próximo como a si mesmo). A exegese bíblica efetuada por Espinosa no Teológico-político mostra que a verdade revelada aos crentes nas mais diversas situações, sob a aparência de uma pluralidade de conteúdos, se reduz, apenas e sempre, à repetição desses dois preceitos. E mais nada.
Contudo, se Espinosa interroga o vínculo entre teologia e política, portanto, a questão do poder, e o vínculo entre teologia e filosofia, portanto, a questão do saber, certamente tal interrogação decorre de uma perspectiva capaz de alcançar o alargamento daquela noção para além de sua definição restrita. O que é, então, a política teológica? A instituição e o exercício do poder a partir de uma fonte externa e transcendente que paira fora e acima da sociedade humana e delega a alguns homens o direito de governar e dominar outros. No que respeita à relação entre filosofia e teologia, Espinosa afirma que alguns poderiam filosofar mais livremente se pudessem liberar-se da teologia. Se pensar é entregar-se ao trabalho espontâneo do intelecto, que tem seu próprio ser no movimento interno e espontâneo de produção, afirmação e articulação das idéias, então, saber é pensar livremente. Nessa medida, um pensar que procure apoio em certezas decretadas do exterior não é propriamente um pensar, mas é, antes, um imaginar. Ora, aquele que pretende conhecer e para isso supõe que a origem e o fundamento da verdade e da certeza se encontram numa revelação misteriosa à qual a razão natural deve submeter-se situa-se, exatamente, no campo teológico. Assim sendo, a separação entre filosofia e teologia, como observamos acima, não se faz pelo tipo de verdade que alcançam e sim pelo tipo de prática que produzem. É essa diferença que permite compreender por que uma teologia racional é impossível, pois a teologia não se funda no trabalho do intelecto ou da razão e, por isso mesmo, não trabalha com verdade alguma, mas apenas com certezas morais que, ao passarem da condição de imagens práticas à de verdades teóricas, engendram aquilo que faz da teologia a morte da filosofia: a submissão à autoridade. Não é surpreendente que use a razão de maneira a poder expulsá-la no momento oportuno.
Assim, a pergunta sobre a impossibilidade de uma teologia racional pode agora ser respondida. Uma teologia racional é impossível: em primeiro lugar, porque considera que a razão humana, sozinha e por si mesma, não é capaz de pleno conhecimento verdadeiro; em segundo, porque faz um uso meramente instrumental da razão para validar certezas morais e convertê-las, de certezas práticas, em verdades teóricas; e, em terceiro, porque julga que a fonte e o fundamento da verdade se encontram fora de nosso intelecto, num ente onisciente e onipotente, transcendente, que se revela, não à razão dos humanos, mas à sua imaginação.
Sob a aparência de separar teologia e filosofia, na realidade Espinosa demonstra que do lado da primeira não pode haver saber, pois é reino de uma autoridade incontestada e incontestável. Região do já pensado, já dito e já feito, operando pelo recurso à citação e ao exemplo, nela nada resta a pensar, dizer ou fazer. Memória estagnada e morta, é a impossibilidade radical do presente e do porvir. Compreende-se, então, que aqueles que queiram filosofar mais livremente só venham a descobrir a possibilidade inédita do pensar e do agir conhecendo a natureza do obstáculo que contradiz esse desejo. Em outras palavras, aquele que procura o sentido de sua obediência ao já pensado, já dito e já feito descobre que precisa abandonar o recinto teológico se desejar realmente pensar, dizer e agir. Isto é, se desejar ser livre.
De fato, para a teologia, a impossibilidade de ir aos fundamentos não é um mero defeito ou uma falha sanáveis de direito, mas é algo constitutivo de sua própria natureza, obrigando-a a fixar em algum simulacro uma figuração qualquer que possa ocupar o lugar da origem e preencher seu papel. Assim, longe de ser um não-saber provisório que poderia cumulativamente transformar-se em saber, trata-se, antes, de um não-saber irremediável. Por isso mesmo, a teologia racional, jamais sendo um saber, é sempre política. De fato, é impossível considerar obra de um infeliz acaso o encontro desse não-saber com uma prática autoritária, porquanto um não caminha sem o outro e ambos carregam em seu interior o princípio de uma dominação irrestrita. O fato de que a dominação se realiza de maneira perfeita - insólita, diz Espinosa - quando a figura do dominador não está imediatamente visível é o signo acabado do exercício pleno da autoridade, pois ter autoridade é fazer-se reconhecer como tal por um outro que a interioriza e se identifica com ela, cumprindo seus decretos e mandamentos mesmo na ausência visível dela. Esse reconhecimento in absentia leva a executar ordens e comandos, não porque seria impossível agir de outra maneira, mas porque, interiorizada, a obediência tornou-se espontânea. Aquele que assim obedece não o faz porque reconheça um valor intrínseco na ordem e no mandamento recebidos, mas porque sente que emanam de um poder reconhecido, ainda que desconhecido. Conseguir a obediência sem o constrangimento da força bruta é obter a posse absoluta do outro. E a teologia sabe que a verdadeira tirania não é aquela que se exibe pelo ferro e pelo fogo, mas aquela que consegue alcançar a universalidade e a homogeneidade do espaço social e político, os corações e as mentes. Essa autoridade não quer a obediência obrigada, pois esta não a legitima: aspira pela obediência desejada e consentida; busca a submissão que se suprimiu como obediência porque já deixou de ser sentida como obediência. Não é surpreendente que, no campo teológico-político e no campo teológico-metafísico, a liberdade só possa manifestar-se como insubordinação e revolta, como pecado e heresia.
Fazendo da filosofia o contradiscurso da teologia, Espinosa produz um discurso livre fundado nas idéias verdadeiras de Deus e dos seres humanos, demonstra que a busca do fundamento não transforma a filosofia em teologia e, a contrapelo, leva-nos a adivinhar o caráter teológico de muita ciência profana. Um saber incapaz de compreender seu próprio fundamento, incapaz de alcançar sua própria gênese e a do discurso que profere é, para Espinosa, teologia - e, para nós, ideologia. Talvez assim possamos compreender o que é a liberdade de pensamento defendida por Espinosa. Longe de ser a vaga aceitação da multiplicidade de opiniões que povoam o social, longe de confundir-se com a noção de tolerância defendida pelas seitas religiosas do século XVII e pelos philosophes do século XVIII, a liberdade de pensamento espinosana, que exige a plena visibilidade da prática política, é simplesmente poder pensar e poder agir sem obediência a idéias, preceitos, mandamentos e decretos transcendentes.
Quem é, pois, o destinatário nomeado por Espinosa? Talvez seja aquele que possa vir a ser filósofo, se desejar pensar, se for capaz de liberdade. Uma vez que esse destinatário é designado, no prefácio do Teológico-político, como filósofo e não-filósofo, caberá ao pensamento e ao discurso livres constituir o espaço da passagem da não-filosofia à filosofia no mesmo movimento em que se oferecem como trilha para alcançá-los. Tornando-se criador de seu próprio leitor, o texto espinosano o cria como filósofo. E só poderá fazê-lo se se apresentar como pensamento e discurso capazes de enunciar de seu próprio interior aquilo que os torna possíveis e aquilo que os tornaria impossíveis, revelando simultaneamente as operações teóricas que sustentam o verdadeiro e as maquinações imaginárias que acionam os dispositivos para o exercício da autoridade. Somente assim se fazem capazes de enunciarem a si mesmos como pensamento e discurso da liberdade, assinalando o lugar onde é constituído e de onde é proferido. Para recusar um pensamento escravo, precisa realizar-se como pensamento sem senhor, denunciando a fonte de toda autoridade por meio da figura daquele que será incapaz de ler o novo e que por isso irá pervertê-lo, mesmo que daí não tire nenhum proveito, obedecendo apenas a impulsos inscritos em seu coração entorpecido pelo preconceito, pelo ódio e pelo medo.
A construção gradual da figura do destinatário pelo discurso do autor pode tornar-se mais perceptível se fizermos uma breve comparação entre o Teológico-político e a interpretação da Bíblia realizada por Hobbes no Leviatã.
Quem lê as duas últimas partes do Leviatã e o Teológico-político há de sentir-se perplexo: as citações bíblicas empregadas pelos dois filósofos na exposição deste ou daquele tema são, em geral, as mesmas. Por que essa escolha idêntica? Por que um autor cristão e um autor judeu manifestam as mesmas preferências... literárias? O texto de Hobbes ilumina o de Espinosa, pois permite desvendar quem é o destinatário buscado por este último. Propondo-se a interpretar apenas o Antigo Testamento e declarando explicitamente que não poderá interpretar o Novo, pois não conhece o grego como conhece o hebraico, Espinosa escolhe cautelosamente todas as passagens do Antigo Testamento que são de uso corrente entre os leitores cristãos. Se no prefácio Espinosa se dirige a um destinatário bastante particular - o leitor filósofo -, este, porém, ali permanece ainda indeterminado se indagarmos quem seria o destinatário imediato do texto espinosano. É Hobbes quem nos deixa ver o leitor procurado por Espinosa, pois que um escritor judeu se detenha naquelas passagens bíblicas que interessam também ao escritor cristão é indício suficiente para que saibamos quem é o destinatário visado por seu discurso. Por outro lado, escolhendo passagens que seu leitor está habituado a ler, Espinosa poderá fazê-lo compreender o sentido inovador do método interpretativo que lhe está sendo apresentado. E, uma vez designado o destinatário, compreendemos algo que poderia permanecer na sombra. Tendo-se recusado a interpretar o Novo Testamento, eis que no capítulo XI Espinosa examina detidamente algumas Epístolas escritas pelos apóstolos, particularmente Paulo. O pretexto da interpretação é indagar se um apóstolo pode ser considerado um profeta ou se deve ser considerado um doutor. A análise estilística das Epístolas conduz à segunda alternativa: o estilo autoritário do profeta e a determinação divina do conteúdo do que deve dizer, a quem e onde deve falar o que lhe foi revelado, opõem-se ao estilo benevolente e meditativo do apóstolo que decide por si mesmo o que dizer, quando, onde e a quem dizer. Embora várias conclusões decorram dessa diferença e impliquem outras que as determinaram, há uma que nos interessa aqui: demonstrar que o apóstolo é um doutor permite a Espinosa demonstrar, em seguida, que a teologia é um fenômeno tipicamente cristão cuja origem se encontra nos ensinamentos do apóstolo Paulo, que, como sabemos, é o pilar religioso dos teólogos da Reforma Protestante. E era exatamente isso que se anunciava nas entrelinhas quando Espinosa dissera estar impedido de interpretar o Novo Testamento por desconhecer o grego. Espinosa não negará a existência de uma teologia judaica, porém, torna patente que esta surge como resposta e contrapartida para a cristã, a qual não é senão o momento em que a religião hebraica passa a falar grego. Assim, ao designar seu destinatário como um filósofo que pensaria mais livremente se não estivesse aprisionado nas amarras da teologia, Espinosa define o leitor de seu texto como cristão, mas não é o prefácio e sim o percurso do texto que institui paulatinamente o perfil do destinatário.
À PROCURA DO DESTINATÁRIO
Ao findar o prefácio do Tratado teológico-político, Espinosa escreve:
Tais são, leitor filósofo, as idéias que ofereço ao teu exame, convencido da importância e da utilidade do assunto, tanto no que se refere ao trabalho como um todo quanto no que respeita a cada uma de suas partes, e por isso creio que não será mal acolhido por ti [...]. Aos demais, não recomendo a leitura desta obra, pois não tenho a menor razão para esperar que lhes agrade. Na verdade, sei como em seus espíritos os preconceitos são pertinazes e como aí estão enraizados depois de abraçados sob a capa da piedade. Sei que é impossível extirpar a superstição e o medo da alma do vulgar. Sei, enfim, que para ele a obstinação parece constância e que não é conduzido pela razão, mas arrebatado pelo ímpeto a louvar e a condenar. Não convido à leitura destas páginas o vulgar, nem todos aqueles que se deixam arrastar pelas mesmas paixões que ele. O que prefiro, aliás, é que negligenciem totalmente este livro, em vez de pervertê-lo, como sempre acontece cada vez que se põem a interpretar, prejudicando (e sem com isto tirarem qualquer proveito para si próprios) aqueles que poderiam filosofar mais livremente, se não considerassem que a razão deve estar a serviço da teologia. Para estes, acredito que meu livro será muito útil.
Texto enigmático. Espinosa nomeia o destinatário de seu discurso - o leitor filósofo - deixando-o, porém, atado nas amarras da não-filosofia, isto é, prisioneiro da submissão da razão à teologia, obstáculo maior para pensar livremente. Quem há de ser esse leitor que se distingue do vulgar? Quem é esse destinatário nomeado simultaneamente como filósofo e como não-filósofo? Talvez na contradição entre o desejo de pensar livremente e a submissão do pensamento aos dogmas teológicos venha a desenhar-se o contorno do leitor procurado pelo discurso.
Se, como afirma o Tratado da emenda do intelecto, pensar é uma subversão efetuada pelo desejo de vencer a dor mortal dos conflitos interiores, só a percepção da contradição tem poder para suscitar o rompimento que inaugura o pensar e o agir, isto é, a filosofia. E o rompimento designa a contrapelo aquilo que impede o exercício de um pensar livre e que bloqueia a ação: a servidão aos bens incertos da fortuna que, ao fim e ao cabo, se mostram males certos. Em outras palavras, aquilo que o Teológico-político designa com o nome de superstição e cuja causa se encontra na confluência entre o desejo imoderado de bens, o temor incessante de males e o sentimento da contingência de todas as coisas e de todos os acontecimentos. Se a escolha do destinatário é também a recusa daquele que será incapaz de ler, a figura do vulgar passa a fornecer um parâmetro para a circunscrição de um espaço definido pela impossibilidade de pensar e de agir: o vulgar não é aquele que acredita que a razão deva submeter-se à teologia, mas aquele que, sucumbindo à superstição, já está possuído pelo poderio dos teólogos sem nem mesmo se dar conta disso, pois seu saber é piedade cristalizada em preconceito. Assim, designando seu leitor e aquele que não saberá lê-lo, Espinosa designa o obstáculo para o pensar e o agir livres: a obediência gerada pelo medo de males e pela esperança de bens, ambos igualmente incertos, que levam a imaginar um poder transcendente e caprichoso que possui representantes humanos, conhecedores de sua vontade secreta, e aos quais é preciso submeter-se.
A teologia é a teoria imaginária da contingência. Centrada na imagem de uma vontade onipotente e transcendente que cria e governa o mundo, a imaginação teológica propõe explicações que conservem o medo e a esperança, pois deixam cada um dos humanos suspensos aos desígnios imprevisíveis de um poder altíssimo; e propõe códigos de conduta em que a vontade humana se submete à divina pela mediação daquele que afirma saber interpretá-la, isto é, o teólogo.
Eis por que o Teológico-político declara taxativamente que a verdade, e única verdade, da teologia é ensinar a obediência, pois seu ponto de partida é a distinção entre a razão ou luz natural e a revelação ou luz sobrenatural, distinção que, na realidade, afirma a inferioridade da primeira e a superioridade da segunda, exigindo que aquela se submeta a esta. Pondo-se como intérprete autorizado das revelações divinas, o teólogo pretende com elas estancar a razão e dominá-la. Assim, o que separa teologia e filosofia não é uma repartição sensata de competências, cada qual ficando de posse de verdades que se excluem sem se negar, de sorte que ambas pudessem ser consideradas regiões diferentes do saber. Filosofia e teologia não se distinguem pelo conteúdo de suas verdades e sim pela atitude diversa que exigem daquele que deseja pensar: a teologia exige obediência e submissão intelectual; a filosofia é exercício livre do pensamento.
Mas, se a teologia exige uma razão obediente e submissa, se transforma o sentimento religioso em submissão a preceitos e dogmas incompreensíveis, nada impede que aquele que deseja obedecer possa também desejar compreender o sentido de sua obediência. É nesse momento da compreensão do significado de um saber obediente que a contradição vem à tona. O desejo de conhecer pode, em um primeiro passo, fazer uma tentativa para que a consolação trazida pela teologia se converta em certeza "matematicamente demonstrada", o que é impossível. Com efeito, aqueles para quem a filosofia e a teologia se contradizem mutuamente, concluindo que uma ou outra deve ser expulsa e que é preciso justificar essa expulsão, não erram quando querem dar à teologia fundamentos sólidos e quando se esforçam para demonstrá-la matematicamente. Evidentemente, ninguém é insensato a ponto de querer expulsar a razão e suas certezas. Entretanto, não podemos justificar essa tentativa, pois que a razão é chamada em socorro da teologia para depois ser expulsa, procurando-se uma razão certa para torná-la incerta.
Se a razão é invocada para assegurar as certezas teológicas, estas ficam sob o domínio daquela e, nesse caso, a teologia tira sua clareza da pura luz da razão, e não mais dos mistérios da revelação, que são sua fonte e garantia. Se, ao contrário, a razão é invocada apenas para auxiliar a teologia na tarefa de persuadir os infiéis, não merece a menor confiança, pois, ou o Espírito Santo se deixa reconhecer por suas próprias obras, ou não há como convencer um infiel de que aquilo que vê e sente seja obra do Santo Espírito e não da razão. A menos que seja para satisfazer um insaciável desejo de poder, nada explica a tentativa da teologia para usar a razão. Esse uso não é, pois, determinado por uma necessidade interna à teologia como saber, mas apenas como aspirante à dominação. Usando e manipulando a razão, a teologia só é capaz de instrumentalizá-la e de mantê-la na periferia dos dogmas. Assim fazendo, a atitude teológica nega a razão como autodeterminação das idéias verdadeiras e confere-lhe uma posição subalterna e de exterioridade diante de verdades que se instituem antes e fora dela.
De onde vem a diferença que torna impossível dar sentido a um saber obediente que apenas desejaria conhecer as razões verdadeiras para obedecer? Em outras palavras, qual a diferença que interdita a instauração de uma teologia racional?
Antes, porém, de responder a essa questão é preciso responder a uma outra: de onde vem a elaboração de uma teologia racional?
Se retomarmos o sentimento da contingência ou da fortuna, que distribui e retira bens e males, veremos que a gênese da teologia racional encontra-se na necessidade de estabilizar a instabilidade supersticiosa, estabilidade que, sozinha, uma religião não parece conseguir.
Com efeito, lemos no prefácio do Teológico-político que, se os homens pudessem ter o domínio de todas as circunstâncias de suas vidas, não se sentiriam à mercê dos caprichos da fortuna, isto é, do acaso ou da sorte, não tomariam a ordem comum dos encontros fortuitos entre as coisas como se fosse a ordem necessária da realidade. Como, todavia, não possuem esse conhecimento e não possuem o domínio das circunstâncias de suas vidas, são habitados naturalmente por duas paixões, o medo e a esperança. Têm medo de que males lhes aconteçam e de que bens não lhes aconteçam, assim como têm esperança de que bens lhes aconteçam e de que males não lhes aconteçam. Como, além disso, desejam imoderadamente coisas que lhes parecem depender inteiramente da fortuna e desejam ter a posse exclusiva delas, afastando todos os outros e, enfim, como reconhecem que tais coisas são efêmeras, seu medo e sua esperança não acabam nunca, pois assim como coisas boas lhes vieram sem que soubessem como nem por quê, também podem desaparecer sem que saibam as razões desse desaparecimento; e assim como coisas más lhes vieram sem que soubessem como nem por quê, também podem desaparecer sem que saibam os motivos de sua desaparição. Para tentar compreender a origem da contingência dos bens e dos males imaginam, então, que coisas boas e más lhes acontecem por vontade de entes superiores e poderosos nos quais passam a crer e aos quais passam a adorar e a dirigir preces. Por medo e esperança, nascidos da impotência para dominar as circunstâncias de suas vidas, os homens se tornam supersticiosos e alimentam a superstição por meio da religião como crença em seres transcendentes ao mundo e que o governam segundo decretos humanamente incompreensíveis.
Ora, medos e esperanças são instáveis e fugazes, pois não temos sempre o mesmo medo e a mesma esperança das mesmas coisas. Sozinha, portanto, a religião não é capaz de dar constância e estabilidade à superstição da qual, no entanto, depende. Para isso precisa da teologia. Em outras palavras, a teologia racional nasce para dar a uma religião revelada um suporte mais firme do que a flutuação das paixões humanas, fixando as formas e os conteúdos incertos e fluidos das imagens e dos afetos, a fim de garantir-lhes e à religião uma constância e firmeza que não possuem. A teologia racional é a imposição da imagem da autoridade como fonte dessa constância e dessa firmeza.
Acompanhando mais de perto os textos espinosanos, notaremos que, para responder à primeira questão - por que é impossível uma teologia racional? -, precisamos perceber que a teologia abarca um campo mais amplo do que poderíamos supor à primeira vista.
Em sentido restrito, a teologia se reduz à atitude teórica que legitima a obediência a dois preceitos que, sendo divinos, são dogmas práticos irrecusáveis: o preceito da piedade (amar a Deus sobre todas as coisas) e o preceito da caridade e da justiça (amar ao próximo como a si mesmo). A exegese bíblica efetuada por Espinosa no Teológico-político mostra que a verdade revelada aos crentes nas mais diversas situações, sob a aparência de uma pluralidade de conteúdos, se reduz, apenas e sempre, à repetição desses dois preceitos. E mais nada.
Contudo, se Espinosa interroga o vínculo entre teologia e política, portanto, a questão do poder, e o vínculo entre teologia e filosofia, portanto, a questão do saber, certamente tal interrogação decorre de uma perspectiva capaz de alcançar o alargamento daquela noção para além de sua definição restrita. O que é, então, a política teológica? A instituição e o exercício do poder a partir de uma fonte externa e transcendente que paira fora e acima da sociedade humana e delega a alguns homens o direito de governar e dominar outros. No que respeita à relação entre filosofia e teologia, Espinosa afirma que alguns poderiam filosofar mais livremente se pudessem liberar-se da teologia. Se pensar é entregar-se ao trabalho espontâneo do intelecto, que tem seu próprio ser no movimento interno e espontâneo de produção, afirmação e articulação das idéias, então, saber é pensar livremente. Nessa medida, um pensar que procure apoio em certezas decretadas do exterior não é propriamente um pensar, mas é, antes, um imaginar. Ora, aquele que pretende conhecer e para isso supõe que a origem e o fundamento da verdade e da certeza se encontram numa revelação misteriosa à qual a razão natural deve submeter-se situa-se, exatamente, no campo teológico. Assim sendo, a separação entre filosofia e teologia, como observamos acima, não se faz pelo tipo de verdade que alcançam e sim pelo tipo de prática que produzem. É essa diferença que permite compreender por que uma teologia racional é impossível, pois a teologia não se funda no trabalho do intelecto ou da razão e, por isso mesmo, não trabalha com verdade alguma, mas apenas com certezas morais que, ao passarem da condição de imagens práticas à de verdades teóricas, engendram aquilo que faz da teologia a morte da filosofia: a submissão à autoridade. Não é surpreendente que use a razão de maneira a poder expulsá-la no momento oportuno.
Assim, a pergunta sobre a impossibilidade de uma teologia racional pode agora ser respondida. Uma teologia racional é impossível: em primeiro lugar, porque considera que a razão humana, sozinha e por si mesma, não é capaz de pleno conhecimento verdadeiro; em segundo, porque faz um uso meramente instrumental da razão para validar certezas morais e convertê-las, de certezas práticas, em verdades teóricas; e, em terceiro, porque julga que a fonte e o fundamento da verdade se encontram fora de nosso intelecto, num ente onisciente e onipotente, transcendente, que se revela, não à razão dos humanos, mas à sua imaginação.
Sob a aparência de separar teologia e filosofia, na realidade Espinosa demonstra que do lado da primeira não pode haver saber, pois é reino de uma autoridade incontestada e incontestável. Região do já pensado, já dito e já feito, operando pelo recurso à citação e ao exemplo, nela nada resta a pensar, dizer ou fazer. Memória estagnada e morta, é a impossibilidade radical do presente e do porvir. Compreende-se, então, que aqueles que queiram filosofar mais livremente só venham a descobrir a possibilidade inédita do pensar e do agir conhecendo a natureza do obstáculo que contradiz esse desejo. Em outras palavras, aquele que procura o sentido de sua obediência ao já pensado, já dito e já feito descobre que precisa abandonar o recinto teológico se desejar realmente pensar, dizer e agir. Isto é, se desejar ser livre.
De fato, para a teologia, a impossibilidade de ir aos fundamentos não é um mero defeito ou uma falha sanáveis de direito, mas é algo constitutivo de sua própria natureza, obrigando-a a fixar em algum simulacro uma figuração qualquer que possa ocupar o lugar da origem e preencher seu papel. Assim, longe de ser um não-saber provisório que poderia cumulativamente transformar-se em saber, trata-se, antes, de um não-saber irremediável. Por isso mesmo, a teologia racional, jamais sendo um saber, é sempre política. De fato, é impossível considerar obra de um infeliz acaso o encontro desse não-saber com uma prática autoritária, porquanto um não caminha sem o outro e ambos carregam em seu interior o princípio de uma dominação irrestrita. O fato de que a dominação se realiza de maneira perfeita - insólita, diz Espinosa - quando a figura do dominador não está imediatamente visível é o signo acabado do exercício pleno da autoridade, pois ter autoridade é fazer-se reconhecer como tal por um outro que a interioriza e se identifica com ela, cumprindo seus decretos e mandamentos mesmo na ausência visível dela. Esse reconhecimento in absentia leva a executar ordens e comandos, não porque seria impossível agir de outra maneira, mas porque, interiorizada, a obediência tornou-se espontânea. Aquele que assim obedece não o faz porque reconheça um valor intrínseco na ordem e no mandamento recebidos, mas porque sente que emanam de um poder reconhecido, ainda que desconhecido. Conseguir a obediência sem o constrangimento da força bruta é obter a posse absoluta do outro. E a teologia sabe que a verdadeira tirania não é aquela que se exibe pelo ferro e pelo fogo, mas aquela que consegue alcançar a universalidade e a homogeneidade do espaço social e político, os corações e as mentes. Essa autoridade não quer a obediência obrigada, pois esta não a legitima: aspira pela obediência desejada e consentida; busca a submissão que se suprimiu como obediência porque já deixou de ser sentida como obediência. Não é surpreendente que, no campo teológico-político e no campo teológico-metafísico, a liberdade só possa manifestar-se como insubordinação e revolta, como pecado e heresia.
Fazendo da filosofia o contradiscurso da teologia, Espinosa produz um discurso livre fundado nas idéias verdadeiras de Deus e dos seres humanos, demonstra que a busca do fundamento não transforma a filosofia em teologia e, a contrapelo, leva-nos a adivinhar o caráter teológico de muita ciência profana. Um saber incapaz de compreender seu próprio fundamento, incapaz de alcançar sua própria gênese e a do discurso que profere é, para Espinosa, teologia - e, para nós, ideologia. Talvez assim possamos compreender o que é a liberdade de pensamento defendida por Espinosa. Longe de ser a vaga aceitação da multiplicidade de opiniões que povoam o social, longe de confundir-se com a noção de tolerância defendida pelas seitas religiosas do século XVII e pelos philosophes do século XVIII, a liberdade de pensamento espinosana, que exige a plena visibilidade da prática política, é simplesmente poder pensar e poder agir sem obediência a idéias, preceitos, mandamentos e decretos transcendentes.
Quem é, pois, o destinatário nomeado por Espinosa? Talvez seja aquele que possa vir a ser filósofo, se desejar pensar, se for capaz de liberdade. Uma vez que esse destinatário é designado, no prefácio do Teológico-político, como filósofo e não-filósofo, caberá ao pensamento e ao discurso livres constituir o espaço da passagem da não-filosofia à filosofia no mesmo movimento em que se oferecem como trilha para alcançá-los. Tornando-se criador de seu próprio leitor, o texto espinosano o cria como filósofo. E só poderá fazê-lo se se apresentar como pensamento e discurso capazes de enunciar de seu próprio interior aquilo que os torna possíveis e aquilo que os tornaria impossíveis, revelando simultaneamente as operações teóricas que sustentam o verdadeiro e as maquinações imaginárias que acionam os dispositivos para o exercício da autoridade. Somente assim se fazem capazes de enunciarem a si mesmos como pensamento e discurso da liberdade, assinalando o lugar onde é constituído e de onde é proferido. Para recusar um pensamento escravo, precisa realizar-se como pensamento sem senhor, denunciando a fonte de toda autoridade por meio da figura daquele que será incapaz de ler o novo e que por isso irá pervertê-lo, mesmo que daí não tire nenhum proveito, obedecendo apenas a impulsos inscritos em seu coração entorpecido pelo preconceito, pelo ódio e pelo medo.
A construção gradual da figura do destinatário pelo discurso do autor pode tornar-se mais perceptível se fizermos uma breve comparação entre o Teológico-político e a interpretação da Bíblia realizada por Hobbes no Leviatã.
Quem lê as duas últimas partes do Leviatã e o Teológico-político há de sentir-se perplexo: as citações bíblicas empregadas pelos dois filósofos na exposição deste ou daquele tema são, em geral, as mesmas. Por que essa escolha idêntica? Por que um autor cristão e um autor judeu manifestam as mesmas preferências... literárias? O texto de Hobbes ilumina o de Espinosa, pois permite desvendar quem é o destinatário buscado por este último. Propondo-se a interpretar apenas o Antigo Testamento e declarando explicitamente que não poderá interpretar o Novo, pois não conhece o grego como conhece o hebraico, Espinosa escolhe cautelosamente todas as passagens do Antigo Testamento que são de uso corrente entre os leitores cristãos. Se no prefácio Espinosa se dirige a um destinatário bastante particular - o leitor filósofo -, este, porém, ali permanece ainda indeterminado se indagarmos quem seria o destinatário imediato do texto espinosano. É Hobbes quem nos deixa ver o leitor procurado por Espinosa, pois que um escritor judeu se detenha naquelas passagens bíblicas que interessam também ao escritor cristão é indício suficiente para que saibamos quem é o destinatário visado por seu discurso. Por outro lado, escolhendo passagens que seu leitor está habituado a ler, Espinosa poderá fazê-lo compreender o sentido inovador do método interpretativo que lhe está sendo apresentado. E, uma vez designado o destinatário, compreendemos algo que poderia permanecer na sombra. Tendo-se recusado a interpretar o Novo Testamento, eis que no capítulo XI Espinosa examina detidamente algumas Epístolas escritas pelos apóstolos, particularmente Paulo. O pretexto da interpretação é indagar se um apóstolo pode ser considerado um profeta ou se deve ser considerado um doutor. A análise estilística das Epístolas conduz à segunda alternativa: o estilo autoritário do profeta e a determinação divina do conteúdo do que deve dizer, a quem e onde deve falar o que lhe foi revelado, opõem-se ao estilo benevolente e meditativo do apóstolo que decide por si mesmo o que dizer, quando, onde e a quem dizer. Embora várias conclusões decorram dessa diferença e impliquem outras que as determinaram, há uma que nos interessa aqui: demonstrar que o apóstolo é um doutor permite a Espinosa demonstrar, em seguida, que a teologia é um fenômeno tipicamente cristão cuja origem se encontra nos ensinamentos do apóstolo Paulo, que, como sabemos, é o pilar religioso dos teólogos da Reforma Protestante. E era exatamente isso que se anunciava nas entrelinhas quando Espinosa dissera estar impedido de interpretar o Novo Testamento por desconhecer o grego. Espinosa não negará a existência de uma teologia judaica, porém, torna patente que esta surge como resposta e contrapartida para a cristã, a qual não é senão o momento em que a religião hebraica passa a falar grego. Assim, ao designar seu destinatário como um filósofo que pensaria mais livremente se não estivesse aprisionado nas amarras da teologia, Espinosa define o leitor de seu texto como cristão, mas não é o prefácio e sim o percurso do texto que institui paulatinamente o perfil do destinatário.
Propriedade | Descrição |
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ISBN: | 9788535903515 |
Editor: | Companhia das Letras |
Data de Lançamento: | abril de 2003 |
Idioma: | Português do Brasil, Português |
Dimensões: | 150 x 230 x 20 mm |
Páginas: | 344 |
Tipo de produto: | Livro |
Classificação temática: | Livros em Português > Ciências Sociais e Humanas > Filosofia |
EAN: | 9788535903515 |
Idade Mínima Recomendada: | Não aplicável |