O Doutor Glas
de Hjalmar Soderberg
Sobre
o LivroExcertos
Nunca vi um verão assim. Um calor sufocante desde meados de maio. Uma pesada nuvem de vapor cobre, o dia inteiro, as ruas e as praças. Só o crepúsculo reconforta um pouco o ânimo. Acabo de regressar do passeio vespertino que faço quase todos os dias, depois de visitar os meus doentes, que não são agora, no verão, demasiado numerosos. Uma brisa fresca e constante sopra de leste, a vaga de calor desprende-se do solo e desloca-se lentamente, transformando-se num grande véu de pano vermelho, que se afasta para oeste. Cessa o ruído dos solavancos das carroças; de quando em quando, ouve- -se somente um fiacre ou a campainha de uma carruagem que passa nos seus trilhos. Percorro vagarosamente as ruas. Aqui e ali, encontro um conhecido, e por um momento paramos os dois à esquina a conversar. Mas porque será que tenho de encontrar, uma vez mais, o pastor Gregorius atravessando o meu caminho? Sempre que o vejo, torna-me à memória uma anedota que, um dia, ouvi contar acerca de Schopenhauer. Uma tarde, quando o austero filósofo estava sentado a um canto do seu café habitual, solitário como de costume, a porta abre-se e ele vê entrar um homem com um semblante desagradável. Schopenhauer observa-o de relance, contrai o rosto num esgar de susto e repulsa, levanta-se e ataca à bengalada a cabeça do intruso. Devido, simplesmente, ao seu aspeto desagradável.
Opinião
dos leitoresDetalhes
do Produto
O Doutor Glas
ISBN
9789896412777
Editor:
Relógio D'Água
Idioma:
Português
Dimensões:
150 x 231 x 12 mm
Encadernação:
Capa mole
Páginas:
152
Tipo de Produto:
Livro
Classificação Temática:
Livros em Português
> Literatura
> Romance
Trata-se de um pequeno livro austero, expedito e denso no estilo. O narrador é um médico respeitado e respeitador de temperamento prático que enfrenta um problema moral: apaixonando-se por uma doente sua, tem pena dela e daí congemina um plano para livrá-la do marido abusador. O livro versa sobre temas como o dever do indivíduo, a hipocrisia consentida, a ordem social e a compaixão pelo outro com uma voz por vezes tão fria e racional que por isso se torna perturbadora. O livro tem pouco mais de 150 páginas e no entanto a história prende-nos muito facilmente com a banalidade não raras vezes desconcertante da vida do dia-a-dia.
Um livro tão grande no seu brilhantismo como pequeno no seu tamanho. Foi a minha primeira leitura de Soderberg, e fiquei desde logo agarrado ao personagem principal. Uma viagem, sem labirintos desnecessários, aos mais profundos sentimentos humanos, sem peias e escrito de forma muito directa e simples. Uma obra essencial de mais um escritor nórdico, literatura cada vez mais presente e valorizada no meu imaginário literário.
Num estilo completamente nórdico - frio, sóbrio e impiedoso - "O Doutor Glas" envolve-nos, num misto de espanto e inquietação, numa espiral destrutiva da qual o herói sobrevive sem mácula. Esse o maior mistério.
Hjalmar Söderberg (1869 – 1941) chocou a Suécia com a publicação do romance "O Doutor Glas", em 1905, abordando temas que, de um modo geral, nunca tinham sido apresentados de uma forma tão explícita na literatura como se se tratassem dos temas mais corriqueiros do dia-a-dia. O Doutor Glas chegou aos trinta anos e nunca teve qualquer relacionamento físico com uma mulher, em parte, devido a uma desilusão de amor em virtude de a sua amada ter morrido muito jovem e de forma inesperada. O amor que sentia por essa mulher impediu-o de experimentar novos relacionamentos e de vir a expor a sua nudez perante uma mulher que era algo que ansiava, mas que não conseguia concretizar porque não conseguia entregar-se completamente. Profundamente citadino, o Doutor Glas era um apaixonado de Estocolmo que descreve não haver outro local na Suécia de então que o estimulasse tanto como a capital onde poderia passear, trabalhar, viver, ter momentos de lazer, nomeadamente a oferta a nível cultural, não esquecendo que era a cidade que mais beneficiava de comodidades a vários níveis. Não tendo investido na sua carreira para além de médico de clínica geral, o Doutor Glas não deixava de assinar as revistas da especialidade mantendo-se atualizado cientificamente, preparando-se para novos desafios, assim como prestar os cuidados necessários perante os seus pacientes. Sendo um solitário, o Doutor Glas tinha muito tempo para dedicar à introspeção, o que é visível em toda a obra que é um diário em que são registados não só os principais acontecimentos ao longo de um ano, assim como os seus pensamentos sobre os mais diversos assuntos. A história começa basicamente quando o Doutor Glas recebe a visita inesperada da esposa do pastor que lhe solicita ajuda em virtude de ter um amante e de não conseguir relacionar-se sexualmente com o marido. A partir daqui, o Doutor Glas embarca numa viagem alucinante passando a desenvolver afetos, também ele, pela esposa do pastor sem que seja correspondido ao longo do processo. "O Doutor Glas" é uma obra que para além de questões relacionadas com adultério, amores não correspondidos, homicídio e emancipação feminina, também levanta questões ético-morais a outros níveis, nomeadamente o aborto e a eutanásia. O Doutor Glas independentemente de ser a favor do aborto e da eutanásia, optou conscientemente por nunca praticar qualquer um destes atos justificando-se que seria sempre preferível seguir os costumes, obedecendo à lei, ainda que naturalmente, tanto um caso como no outro, invariavelmente viriam a ser legislados por imposição da vontade humana, não havendo necessidade de vir a ser um mártir à conta das suas ideias, cumprindo-se sempre a lei vigente. Sobre estas questões, são várias as páginas em que se assiste a uma constante luta entre o querer e o dever prevalecendo o dever (a lei) por uma questão de consciência. Esta obra de Hjalmar Söderberg publicada há mais de um século continua a questionar temas da sociedade contemporânea relativamente aos quais ainda não há preparação educacional e cultural em muitos países de modo a poder legislar-se sobre os assuntos em apreço. Excertos: "- Ganhei uma repulsa terrível pelo meu marido. (...) Não pela pessoa dele. (...) Foi sempre dedicado e bondoso comigo, e nunca me disse uma palavra desagradável. Mas causa-me uma repugnância medonha... Não sei como exprimir-me. Aquilo que pensava pedir-lhe é muito fora do comum. E talvez não se adeque à sua ideia de justiça. Não sei o que pensa deste género de coisas. Mas há em si qualquer coisa que me inspira confiança, e não conheço ninguém mais que possa ajudar-me e a quem eu possa falar do assunto. O que lhe pergunto é se não poderia falar com o meu marido, doutor. Não poderia dizer-lhe que tenho uma doença, uma infeção no útero, e que ele terá, por isso, de se abster dos seus direitos, pelo menos por algum tempo? Direitos. Passei a mão pela testa. Fico cego de furor, sempre que ouço a palavra usada nesse sentido. Deus do céu, que terá levado os cérebros humanos a terem a ideia de direitos e deveres a semelhante propósito?" (pp. 25-26) "No que eu mais pensava, nessa altura, era na doença. Uma doença prolongada, incurável, repugnante. Eu que vi tanto já... Cancro, lúpus, cegueira, paralisia... São muitos os infelizes que vi aos quais teria administrado, sem o mínimo remorso, uma destas pílulas, não fora em mim, como noutras pessoas decentes, o interesse próprio e o respeito pela lei terem falado mais alto do que a compaixão. E, em contrapartida, não falta também o material humano inútil e desesperadamente estropiado que contribuí para manter exercendo o meu ofício, sem corar sequer de cobrar os meus serviços. Mas o costume é assim. É sempre prudente seguir o costume, e sobre questões que pessoalmente não nos afetem muito fundo, talvez o melhor seja segui-lo. Porque haveria eu de me tornar mártir em defesa de uma opinião que, mais tarde ou mais cedo, será a de toda a humanidade civilizada, mas que hoje é tida por criminosa? Terá de chegar, e chegará, o dia em que o direito a morrer seja considerado muito mais importante e inalienável do que o direito a introduzir um boletim numa urna eleitoral. E quando os tempos estiverem maduros para esse dia, todo o doente incurável - e igualmente todo o «criminoso» - terá direito à assistência do médico, caso este aceite a libertação." (p. 71) "Queremos ser amados; à falta de amor, queremos ser admirados; à falta de admiração, ser temidos; à falta de sermos temidos, odiados, desprezados. Queremos suscitar nos outros esta ou aquela espécie de sentimento. A alma tem horror ao vazio, e quer a todo o custo manter os seus contactos." (p. 73)